A partir de então deixei de pensar em mim

Os anos passam e a gente envelhece. A mocidade deixou um rastro de saudade num passado distante. Pra onde foram meus vinte anos? E o menino que existia dentro de mim para onde foi? Onde se escondeu a juventude que não se mostra nos meus parcos cabelos brancos? E aquelas brincadeirinhas ingênuas? Agora quase nada mais resta do que fui.

Apenas e tão somente lembranças. Muitas ainda fugidias, perdidas dentro de um baú de guardados, poder-se-ia dizer um emaranhado confuso, que logo vai ser esquecido num ataúde frio, enterrado na cova do olvido.

Faz mais de cinquenta anos que morei naquela rua de tantas lembranças eternas. Daqui a posso ver. Bastante transformada.

Quando ali vivia, junto aos meus amantíssimos pais, pensava apenas em folguedos primaveris.

Ainda não havia despertado dentro do meu eu o senso de responsabilidade. Nem me passava pela cabecinha oca o que seria de mim.

Apenas pensava em brincar. Como os netos que hoje me sucedem. ´

Os estudos passaram a fazer parte de parte de mim a partir dos sete anos. Hoje as crianças vão para escola bem mais cedo. Creio que os meninos de hoje deveriam ficar mais anos junto aos pais. Já agora eles delegam poderes aos professores, como se eles pudessem assumir a paternidade. Incumbência tão somente nossa. Seus progenitores.

Naqueles verdes anos nem em sonho pensava qual profissão abraçar. Coisa própria da idade. Pois ainda não existia a maldade muito menos a cobiça. Nem o senso do dever a ser cumprido.   Apenas sentimentos bons. Inerentes a pouca idade. Próprios de mentes pueris.

Confesso, uma vez que a juventude entrelaçou-se em mim, de moleque travesso passei a ser um jovem pelo avesso.

Tornei-me um tanto quanto ansioso, argentário demais, talvez pela preocupação com o futuro, o que iria ser, preocupado demais como iria proceder. Tanto na escola, quanto na vida.

Já com a profissão eleita passei a ser mais compenetrado. Deixei as brincadeiras de lado. Mudei radicalmente meus costumes.

Enveredei-me pela medicina de corpo e alma. Aos quase trintanos, quando aqui cheguei, na minha Lavras querida, só pensava em construir patrimônio. Já que a vida dita assim.

Quase aos trinta me consorciei a uma mulher adorável. Com ela tive dois filhos. A conta exata do que pensava ser o certo.

Como trabalhava naqueles tempos fecundos! Foram os anos mais produtivos da minha existência.

Desta maneira passaram-se mais de quarenta anos. Ainda trabalho. Considero-me longe da aposentadoria.

A partir do nascimento do meu primeiro neto as coisas mudaram.

Agora ainda penso no trabalho. Não com tanto afinco. A medicina ainda me seduz. E muito. Mas, ao ver aquelas pessoinhas brincando, mostrando ao avô aqueles sorrisinhos coloridos de inocência, de repente me vi no passado. Eu era assim. E como a marcha dos anos me transformou.

Antes, quando comecei na medicina, pensando em amealhar recursos, frutos do meu trabalho duro, quase não tinha tempo para pensar na vida. Somente os anos me ensinaram a ser mais humano. Não pensar tanto nos ganhos .  E sim em me tornar um ser humano melhor.

Agora, passados os sessenta e tantos anos, prestes a adentrar a morada dos setenta, meus ideais se transformaram com tal radicalidade, que nem penso mais na minha idade.

Meus valores mudaram. A sofreguidão em fazer fortuna cedeu lugar a uma indizível tranquilidade do dever quase cumprido.

Meu foco é outro. Quanto tempo mais estarei aqui? Quantos anos viverei sem que as doenças inoportunas tomem conta de mim?

Como os pensamentos mudam. Como a vida se modifica.

Antes pensava por demais em mim. Agora, talvez mais amadurecido, ainda longe da podridão, quando me olho no espelho me sobe ao peito adentro uma inevitável conclusão.

A vida passa. Os sentimentos mudam. A gente se transmuta com tal velocidade, que, de repente, não mais que num repente, quando menos se espera, lá vem a morte carregando a gente.

E tudo que passou passou, tão repentinamente, que pensar apenas na gente não vale a pena. Outros valores existem. Assim como os netos são a continuação de nossos caminhos.  Investir naquelas pessoinhas lindas indubitavelmente é continuar a viver. Depois de aprender a arte de conviver fraternalmente tornei-me, finalmente, mais feliz.

 

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