Ontem passei por um rebanho de carneirinhos mansos, mas quase fui atropelado por uma besta fera

Nem todos os dias se parecem gemelares. Uns são risonhos. Felizes e cheios de acontecimentos alvissareiros. Já outros, nem todos os dias são parecidos, ainda bem, a gente acorda com o pé esquerdo, cai da cama, morde raivoso o travesseiro, deixa a descoberta a nossa acompanhante, que resmunga um xingo qualquer ao nosso atrevimento, vamos lenta e preguiçosamente ao cômodo de banhos, da torneira não sai água alguma. Impossível tomar uma ducha morna revigorante. Quando, uma vez na cozinha falta gás. Não tem como fazer um cafezinho quente, passado na hora, poder-se-ia dizer da amargura. Uma vez no vaso sanitário, naquele trono onde a gente confabula toda a nossa angústia fecunda com as paredes azulejadas, e delas não sai resposta de acórdão com nosso querer, aí, neste exato momento, reféns do desaponto de intensa solidão, vamos a luta. Na cidade, de fora dos portões acolhedores de nossa verde morada, que coisa linda é viver num condomínio acolhedor como o meu, nosso, percebemos logo que a vida lá fora não é nenhum cor de rosa. Predomina o cinza plúmbeo, ou o negrume da noite escura.

Sextas feiras deveriam ser dias felizes. Creio eu. A exemplo de outros iguais que pensam com igual cor. Os bebedores de cerveja sonham com os finais de semana. Muitos o antecipam para um dia antes.

No meu caso, considerando-se meu lado médico, em verdade deveras é assim. Não tenho atendimento em unidades de saúde públicas. Como nos demais dias de semana.

Sábado é dia nacional do caipirez. Quando me desvisto dos meus tênis de boa marca, das camisas sociais que abomino, das calças do mesmo tecido. Deixo aqui uma confissão que de tempos pra cá faz parte do meu interior. Cada vez mais me sinto anti-social. Como me sinto a vontade entre bichos e outros animais! Muitos os chamam de irracionais. Quem seria qual?

Daqui da janela da minha casa em construção, tomara em fase final, observo um rebanho de vacas solteiras pastejando bucolicamente entre suas iguais. Que paz elas me trazem…

Hoje vou pernoitar aqui. Entre cantos de pássaros silvestres. Em meio a vacas mugindo. De um amigo cão ladrando sua enorme fidelidade. Entre dois cavalos: uma égua que vai parir em poucos dias. Seu filho castanho, batizado em honra ao meu netinho querido – Theo.

A casa de um lance curto de escada ainda não tem camas. Quartos ela os têm. Mas pra que conforto? Se a gente o tem na cidade? Aqui, no município de Ijaci, beira lago do Funil, não tenho vizinhos senão os animais. Pra que viver em eterno ajuntamento, muro a muro, parede a parede, se aqui a linha divisória se mede, a frente, pelas águas plácidas da represa. Do lado esquerdo com um pasto de vacas pastando. Do lado direito posso ver minha égua, quase mãe segunda perto da baia, onde lhe é servida ração de boa qualidade. Aos fundos, perto de um pomar jovem, meu cão Del Rey se recuperando de uma internação por uma virose quase letal. Não fosse pela presteza do atendimento de um competente médico dos bichos ele não ladraria aqui perto. Separado da sua mãe equina fica o potrinho de mesmo nome do meu netinho. Não vou repetir que se trata do Theo Horse.

Que noite aprazível me espera. Ao lado de meus animais e de outros que não me conhecem bem. Ainda não lhes fui apresentado. Neste caso, “muito prazer” eu diria.

Voltando a cidade perto, no dia de ontem, assim que tentei dizer boa tarde ao amável porteiro do condomínio, estava com meu fone de ouvido ligado, como pelo mesmo portão entreaberto adentrava um excelente profissional dentista, fui até ele na tentativa inglória de marcar hora.

Estava me sentindo feliz. Era sexta-feira, vinte de outubro.

No exato momento em que eu, de ouvidos abertos, fui prosear rapidamente com meu dentista, apareceu, do nada, em velocidade não condizente com o local, um veículo desequilibrado. Não ele, pobre carro. E sim sua condutora. Desafeta minha e da minha pequena grande mulher. Não vou declinar o motivo. Fica para depois.

A dona do carro desceu furiosa. Pronta a entrar em vias de fato. Não nos atracamos, como era de sua vontade, por dois motivos listrados a seguir: ela penso ser mulher, me deixaria todo arranhado. Talvez até mordido. Em partes visíveis. E assim fugi da luta, para evitar mal pior.

A besta fera, munida de dois celulares, ligava e religava. Não sei a quem. Tomara ao deus daria. Jeito nela talvez não. A besta fera não toma jeito. Quem sabe dela é o pobre marido.

Agorinha mesmo vacas pastejam. Carneiros não.

Já ontem, sexta-feira, dia internacional do bom humor, ao sair do lindo logradouro onde moro feliz, quase uma besta fera me deixou debaixo das rodas de um carro. Atropelado, trôpego, talvez mortinho da silva. Apesar de me chamarem pelo sobrenome Rodarte de Abreu.

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