Zé Esperança que se foi nela

E ainda dizem que esperança é a última que morre…

Não estava sendo fácil aquela primavera seca que se assanhava toda naquele meio, quase fim de outubro morto.

Nada de chuva a encantar a terra. Nada de aqueles pingos cristalinos que desciam do alto fazendo suspirar o entorno.

Até o açude, a mesma época do ano transbordando, mostrava o fundo barrento. Não um barro molhado. E sim placas de terra seca rachada como quando um dia vi um sapo enorme falecido com a pele das costas toda fendida. Era apenas uma velha lembrança de quando o sapo cururu cantava animado na beira do rio. Como deve ter sofrido o batráquio mercê da falta de um brejo molhado e cheio de taboas onde se esconder. E talvez se apaixonar por uma rã de olhos sonhadores. Que com ele formaria uma família de sapinhos cururuzinhos, iguaizinhos aos dois.

A família do infeliz Zé, todos ali nascidos, criados e pouco espichados, sofria como o pobre sapo morto, devido a mesma condição climática: a seca perversa que fazia a todos os estoicos ruralistas vítimas da inclemência do tempo ingrato.

Outubro fechava as olheiras. E neca de a água do céu despencar calmamente, não furiosamente, como em anos anteriores. Olhando pra cima só se via o azul doído nos olhos. Além da amarelice do sol, que nos fustigava a menina dos olhos claros. E todos da família valente do Zé tinham olhos claros. Que se mostravam azuis até demais.

Manhãs seguiam-se a noites insones. Estrelas brilhavam bailarinas. Muitas delas se pareciam a pirilampos irrequietos voando baixo. E alguns eram pegos nas conchas das mãos pelas mãos do menino ainda, o mesmo Zezinho, que no meio da história passou a ser o personagem central da minha crônica matinal.

De nada adiantou a esperança costumeira da família inteira. Formada de pai, mãe, e dois irmãos mais velhos. Os quais debandaram em direção à cidade, por falta de perspectiva de crescimento na roça.

Outubro ameaçava vomitar desesperança pelo seu derradeiro dia. O final do mês se avizinhava célere.

Toda santa manhã era a mesma rotina. Olhar o céu, sonhar com ele cinzento, das nuvens dessa cor despencar água com rico sabor de terra molhada, recém-arada, pronta a receber grãozinhos de milho novo, sementes de bom pedigree a se transformarem em uma roça de milho de espigas enorme, árvores verdadeiras que, uma vez picadas fino encheriam buracões enormes de pura silagem de milho novo.

Mas nada do velho São Pedro ajudar nas pretensões da boa gente da roça. O sol castigava não apenas a pastaria amarela. Como da mesma forma a alma dos sempre esperançosos senhores do engenho. Que ainda tinham na cana a esperança de ver vacas gordas de pelo brilhante, cada úbere de encher os olhos de lágrimas chorosas daquela gente especial. Cada uma delas encher dois baldes de dez litros cada. Até ver a espuma quentinha saltar pelas beiradas.

Novembro apareceu na esquina da vida com seu hálito de poucos amigos.

Como o mês anterior o céu continuava a vestir azul. Era um azul piscina uma vez limpinha como a alma de anjos. Depois de receber o cloro de véspera. A sujeira precipitar e ser aspirada pelo piscineiro. Hábil e experiente senhor acostumado a mesma rotina desde quando criança.

A produção leiteira despencava a olhos e baldes vistos. Dos quase quinhentos do mês passado passou a ser menos de trezentos. Em contraste ao preço alto dos insumos, exatamente no momento certo quando a entressafra entra, o preco do leite despenca. E sobram ofertas nos supermercados da vida.

No fim das contas o prejuízo aumenta. A fome das vacas incrementa. A seca pasteja pachorrenta.

Quando dezembro aparece, assim que a benzedeira do lugar acende velas, reza contrita, chora junto a todos, faz mandingas na encruzilhada, mas nada ajuda a tapar a boca desdentada da seca madrasta. Nenhum sinal de chuva no ar. Apenas poeira que contribui ainda mais com a bronquiolite alérgica dos pimpolhos catarrentos, dos meninos novinhos que tossem ao sabor do vento. A doenças respiratórias abundam. Como fica mais e mais anemiada a secura do lugar.

Foi num sábado, da mesma forma seco e esturricado, que o fato nefasto se deu.

A família todinha do Zé Esperança acordou com um estranho pressentimento. A cama onde dormia o esperançoso Zezinho acordou molhadinha. Não era xixi. Nem mesmo urina.

Era água da boa. Como daquela mina linda que secou há exatos dois meses. Nunca havia acontecido dantes.

Todos acorreram ávidos por ser aquela água indício de bons augúrios. A mãe do Zezinho molhou a mão direita naquele líquido saído do nada.  Era uma calda cristalina, viscosa, de sabor adocicado como mel.

Com ele ungiu a testa da família todinha. Como se faz com água benta. Ou equivalente.

Uma vez do lado de fora da casa, uma casinha tosca, todos, sem exceção, olharam em direção ao céu, ainda escuro.

Esperançosos que logo a chuva benvinda cairia fecundando a terra exaurida.

Mas outro mês se passou. Dezembro veio calminho. E neca de chuva miúda, ou graúda, cair.

Janeiro anunciou a entrada do ano novo. Nada de chuva, nada de novo.

A esperança do desinfeliz Zé se foi com ela. Nada restando senão seca sobre açude seco.

 

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