A ipelização do canarinho da terra

Com que admiração vejo a florada dos ipês! São flores amarelas, roxas, brancas donzelas, que recém nasceram do útero fecundo da árvore do ipê. O que mais me faz deslumbrar é a época que tal fato acontece. Em plena seca, agosto, ventoso de frio, quando quem sai à rua bem cedo sente na pele o rugir ululante dos ventos de agosto, abriga-se em grossos capotes, toucas ou chapéus de lã ou outro material que aquece, e anda apressado de tal maneira para tentar deixar o frio do vento por trás, embora não consiga ver sair vencedor seu intento.

É assim que comigo acontece todas as manhãs. Seja no calor, no frio do inverno, em que tempo for. A cama não me acolhe depois das sete. Dispo-me dela, do pijama quando uso, a maior parte das vezes nada visto a não ser minha própria epiderme. A mim basta um fino lençol, um cobre leito macio, e a minha adorável esposa.

Foi hoje que ocorreu o sucedido. À primeira leitura podem dizer que tudo isso nada mais é do que fruto de mais um momento dos meus devaneios. Pode ser. Talvez seja. Conquanto para mim, autor, o fato de fato se deu. Acreditam?

Ao subir a rua empinada de minha casa ao portão do condomínio deparei-me com uma cena pela vez primeira. Não os havia observado antes por aqui. Na minha roça em Ijaci, sim.

Um bando de canarinhos da terra, pousados no asfalto cascorento, não cantavam de contentes. Pelo menos um deles.

Notei nele ares de infelicidade. Talvez tenha sido impressão do escritor. Parei ao derredor do bando de pássaros amarelinhos, uns em vias de amarelar, por uma fração de minutos. Não tinha pressa de chegar aqui, onde estou a espera de pacientes. Enquanto eles não entram pela porta por onde entrei escrevo, febrilmente.

Observando atentamente os canarinhos vi um deles, parado, sem procurar alimento, um resto de fubá que acabou avoando de dentro do prato dependurado num galho da arvorezinha de Murta que enche-nos os olhos com suas florzinhas brancas e perfumadas. Não agora, e sim mais ao fim do ano, depois das chuvas de novembro.

Este mesmo passarozinho, não sei se macho ou fêmea, aquele descrito antes, deu-me a entender que não estava feliz como canarinho. Na adversa posição da minha, que sou feliz como médico e escritor.

Não pude conversar com ele, na linguagem lírica dos pássaros, em seus trinados maviosos, por mais de uns cinco minutos.

Mas deu para entender parte do seu canto infeliz.

“Meu senhor, seu doutor. Desde que eclodi de um dos ovos chocados no ninho, aqui pertinho, naquela mesma arvorezinha de Murta que o senhor vê daqui, já que nasci canarinho, da mesma cor das flores do ipê, a princípio, em filhote, era sujo de verde ainda por madurar, assim que minha mãe canarinha nos abandonou, eu e meus dois irmãozinhos, logo nos despencamos do ninho, eles sim, amaram ser canarinhos. Já eu, sonâmbulo e sonhador, queria ir mais além do ninho, dos galhos das árvores tantas, do acasalamento com outra da minha espécie, ir mais além de um simples passarinho cantor e fuçador de esterco de curral”.

Eu fiquei ali, sem resposta, estupefato, com a fala mansa do pássaro amarelo. Não lhe retruquei a fala. Fiquei na minha, pensativo e pensador.

Noutro dia, daí a minha imaginação fecunda ditou o final dessa história, ao passar debaixo da árvore do ipê amarelo, em plena floração maravilhosa, são duas delas, parei por baixo uma pá cheia de minutos.

Lá na ponta do galho mais alto do ipê amarelo, avistei, olhos inquiridores, uma flor especial. Ela tinha asas como as do canarinho que um dia dele ouvi a confissão. Tinha uma cabecinha da mesma forma que a do tal canarinho triste. E, pasmem!, cantava com a mesma eloquência maviosa do canto dos canarinhos.

Pedi a um jardineiro que cuidava da pracinha agora em vias de ser remodelada, finalmente, para os apreciadores dela, que, por favor, me ajudasse a subir até onde estava o presumível canarinho da terra para mim feito flor.

Com a ajuda prestimosa dele consegui ir lá em cima. Cheguei docilmente ao lugar onde estava a flor muito parecida à figura linda do canarinho daquele dia antes, da nossa prosa amena, quando ele me contou a sua história rica em decepções e amarguras.

Com enorme cuidado, assim que o menino que ainda me veste o interior, assentado com toda cautela num galho perto da flor canarinha, do bico flor daquela visão idílica, escutei, entre incrédulo e extasiado, esta fala que me fez acreditar ainda mais em Deus: “sim senhor, meu bom doutor. Sou eu mesmo. O canarinho que virou flor do ipê. Agora estou feliz. Não mais canto. E sim encanto. Sei que tenho vida breve. Logo desço daqui, me esborracho na relva ressequida do jardim. Desta pracinha por onde o senhor sempre passa. Ao descer a rua, bem cedo, para descrever e escrever o que seu cotidiano dita. Não era feliz como canarinho da terra. Agora sim, desde que me ipelizei, serei feliz enquanto minha mãe, árvore de ipê, me quiser aqui. Neste galho alto, frágil, como somos todas as flores do ipê”.

Esta foi, talvez não seja a última, que um canarinho amarelinho, dito da terra, ipelizou-se e foi feliz, mesmo por pouco tempo. Já que a verdadeira felicidade é composta de instantes fugazes. Perenizar felicidade é impossível. Esta crônica em verdade constata esta premissa.

Verdade?

 

 

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