Vitinho enxadão e Nicanor patrol

Como agosto, quase nos seus estertores finais, tem feito frio e dono de um vento uivante. Folhas caídas, soltas ao vento, papel sendo levado adiante, pessoas sentindo frio, não conseguindo parar na rua, animais no pasto comendo nacos de capim amarelecido pela estiagem prolongada, vacas varando cercas em busca de comida mais substancial, flores multicores dando seus shows de rara beleza. Este é o cenário do mês de agosto. Da mesma forma cinzento, seco, frio pelo vento que ruge, mas, se bem que lindo dado à florada dos ipês, agora é a vez dos amarelos enfeitarem a paisagem agreste.

Foi com este jeitinho de coisa ruim que os dois amigos, vizinhos de pasto, roceiros sem quase nada a sobrar da renda do leite magro de dez vacas cada um, que ao final do mês empatava com a despesa com a ração e a silagem de milho recém-enfiada dentro de um buracão enorme, pertinho dos cochos onde as vinte vacas se fartavam, dali não arredavam cascos, pois no pasto nada havia para comer, salvo algumas folhas ainda verdes na ponta dos galhos finos.

Todo ano a cena se repetia. Fartura no período das águas e penúria na estiagem. E um fato incômodo ao bolso a todos assustava: justamente no tempo da seca o preço do leite ia ao fundo do poço. Em tempos de chuva, com a pastaria dando sopa, da mesma forma não valia a pena produzir leite sobretudo em quantidades baixas. Mas, a exemplo de quem nasce na roça, ali tem o umbigo enterrado, ou o coração ali fincado, como eu, mesmo mercê de tamanhos atropelos todos eles, esperançosos como sempre, sonham com um ano melhor do que o anterior. E isso acaba não acontecendo, via de regra.

Nicanor, mais ambicioso do que o vizinho, com quem tinha uma rusguinha oca, por causa de mulher, um dia quando foi à cidade, viu um anúncio que o colocou em sobressalto. Uma patrol, daquelas moto- niveladoras seminovas estava a venda, a preço de uma safra de milho de mais ou menos dois alqueires. Ao todo cerca de cinquenta carros de milho saltando pelas beiradas do carro de boi.

Como não dispunha nem da metade daquela oferta em milho seco, e queria adquirir a tal máquina pesada, na finalidade de servir a ele mesmo e a seus vizinhos perto ou de longe, com ela faturar alguma graninha maior, acabou fazendo a catira com o vendedor, e levou a casa da roça a máquina que raspava estrada, difícil de manobrar. O pagamento seria feito dali há dois meses. Em espécie, isso é, milho em espiga, já seco, prestes a ser moído, para ser ensilado em grandes toneis a beira da estrada.

Já o amigo, entre aspas, Vitinho, menos sonhador, mais pé no chão, mão de vaca como sói ele, contentava-se com seu enxadão, enorme, de aço maciço, herança de um avô por parte de pai. Com ele fazia regos grandões, furava valas enormes, criava coisas e loisas impossíveis de serem feitas com tais instrumentos de aspecto tosco, mas que fazia milagres em mãos experientes.

Diziam as boas línguas do lugar que Vitinho, à falta de mulher na cama, dormia com o enxadão, com o qual fazia sexo, não entra em minha cabeça como era feita a coisa.

Duas semanas depois, com a chuvadonha despencada no final de semana, eis que Nicanor encrava com seu tratorzão numa ribanceira danada.

Tavez por falta de prática em dirigir aquela geringonça, ou pelo simplório fato daquilo estar em péssimas condições, ao subir uma ladeira empinada, raspando com o enorme facão enfiado no meio da patrol, a moto-niveladora caiu num desvio do terreno, quase tombando sobre o corpo franzino do pobre Nicanorzinho miúdo. Ele escapou da morte por ainda não haver chegada a sua hora. Por puro quase.

Quem o acudiu? Nada mais, nada menos, que o enxadão do vizinho Vitinho, que por pura sorte passava na horinha.

Ambos, enxadão e Vitinho, fizeram um rego fundo num dos lados da patrol tombada no acostamento barrento. Enquanto o enxadão brandia feroz o desafortunado Nicanor gemia de dor e de tristeza. Meio atropelado pela máquina de peso pesado.

Ao cabo de duas longas horas eis que o desesperado Nicanor foi salvo do barro grudento, em que se transformou a estrada. Graças aos dois: o Vitinho  e seu enxadão corajoso, nascidos com  uma nobre missão: salvar da morte certa os atolados no brejo da esperança morta.

Diz a lenda, já fazem anos que o fato aconteceu, que, na parede da igrejinha da vila onde moraram os dois, existe uma pintura do ocorrido. Uma patrol tombada, sobre uma alma penada, e um valente senhor montado num enxadão fio de aço puro, salvando o quase acabado Nicanor da tumba rasa. Vitinho enxadão inda hoje é tido como santo. Se do pau oco, ou não, não me cabe escrever o desfecho da história. Quem sabe a vocês?

 

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