Creio ser de boa fé. Por vezes, quando faço um negócio, um reles orçamento me é encaminhado pelo espertalhão, aceito-o com enorme sofreguidão. Só depois do logro, tempos depois, ao constatar que conseguiria um preço menor, e bem, constato-me a ingenuidade, própria de criança dormindo, assim como meu neto Theo, e acabo cometendo o mesmo equívoco, dias depois.
Por falar em ser criança, doce infância, verdes anos verdejantes dos bons tempos que se alongam, ficando de fora do horizonte que me norteia os olhos, quem me dera voltar ao que era. Um bebê chorão, um meninote sapeca, ou, caso fosse menina, brincaria de boneca, presenteando-a com lindas roupinhas bordadas pelas lágrimas que da minha face de adulto escorreram quando da morte dos meus pais. Primeiro foi com meu pai que passou o malfadado e ao mesmo tempo esperado dia. Mas, pela voracidade da doença que o acometeu, ainda sem ver de perto os dois olhinhos ativos do meu neto Theo, seu bis, e de outros que virão, talvez tenha sido melhor assim. Não para ele, nos seus setenta e sete anos ainda, quiçá ele pudesse estar mais tempo junto a nós.
No caso da minha querida mãe, que foi andando apoiada por mim ao mesmo hospital que raramente agora me recebe, não as saudades que quando operava dia e noite ali, por certo seria muito melhor estar com ela anos e anos mais, tomara a eternidade fosse pouca para desfrutar-lhe a paciência, o amor que ela nutria pelos seus três filhos, o carinho que ela tinha por meu saudoso pai.
Hoje, dois de abril, domingo de sol seco, quente, um dia após o dia da mentira, este texto é verdadeiro, não mais uma invencionice minha, ao chegar da roça acompanhado da minha dona, para tentar tirar da minha cabeça, não afeita a projetos de construções, sou péssimo nessa arte também, como desprezo os números e as suas consequências nefastas em nosso cotidiano, a vida deveria ser apenas feita de letras e palavras bonitas, não de contas, boletos, malotes, saldo bancário no vermelho, etc., assim que adentrei nesta sala ampla, feericamente iluminada pela luz do dia, já é quase meio do dia, deparei-me com um peixinho do aquário boiando a superfície. Mortinho da silva, embora não lhe saiba o sobrenome.
A morte de um peixe aquariano não me causa espanto. Muito menos lágrimas escorrem-me pelo canto dos olhos, em díspare contraste quando meus progenitores se despediram da vida, pior ainda de nós.
Cansei de falar na morte. Seria bem melhor comentar sobre a sua opositora feroz, que se mostra na florada dos ipês no secume do outono, no casal de beija-flores, logo depois de ver chocarem dois ovinhos, frutos do seu amor, e, logo depois refazer outro ninho, pertinho do outro, deixar lá apenas um ovinho, e, com todo o desvelo se revezarem na choca do beijaflorzinho que logo irá alçar voo. Isso sim é falar de vida. Muito melhor que comentar sobre a morte. Inevitável adversária do dia lindo que se mostra lá fora, caso fosse escolher um dia para morrer por certo não seria hoje.
Sei que todos não escaparemos da velhice. Uma dia ela nos cavalgará, nos castigará, nos vai fazer descortinar no espelho todo o viço da mocidade, as rugas irão incomodar-nos a face, as cãs não deixarão nossas têmporas em paz.
Sei que a juventude passa, como a uva rosada, ou no tom verde a que estamos acostumados, passará. O grande Quintana poetou: “ Todos esses que aí estão, atravancando o meu caminho, eles passarão, eu passarinho”. Eu ainda estou apenas passarinhando.
Nos últimos anos, tomara esses últimos anos não sejam em verdade os derradeiros, tenho tentado, estoicamente e modestamente, aumentar o tempo que me resta. Cuido de mim como a mãe beija-flor cuida do seu filhote. Melhor ainda, pois, quando o passarinho hiperativo aprende a voar, ele deixa não apenas o ninho, como idem o abraçar de asas dos pais. Ele se torna livre e independente, como eu tentei ser da saudade dos entes caros que se foram, sabedor que os encontrarei de novo anos, meses, dias?, depois. E não consegui.
Ao tentar ir de marcha-a-ré no caminhar tortuoso do tempo, contando os anos de trás pra frente, mais um ledo engano cometi. Dos tantos que a vida me fez ciente. E não aprendi.
Hoje tenho sessenta e sete anos de idade. Muitos, ao me verem correndo, nadando, pedalando não tanto, escrevinhando tanto, tanto, e meus dedos não cansam, sempre indo, seja ali, acolá, usando as pernas ao invés das rodas de um carro, exclamam, talvez na intenção de me verem alegre: “ Doutor Paulo! O senhor tem em verdade sessenta e sete anos? Não parece, e sim bem menos”. Só não abraço a pessoa, principalmente no caso de uma linda moça, para evitar ser processado por assédio. Ou coisa equivalente.
Mas, logo que me volto ao espelho, concluo que a fala boa foi nada mais, nada menos, do que um estímulo para que eu corra mais, mais e mais, pela estrada asfaltenta, e seja colhido de frente por um carro em disparada, e meus restos mortais, de novo comento sobre morte, fique mercê dos urubus, seres negros, por muitos tido como repelentes, no entanto, para mim, são criaturas aladas como os beija-flores que beliscam as flores, para delas sugarem o néctar, ajudando a polinizar tudo em volta, deixando a linda natureza em festa, como neste outono lindo que compartilhamos. Todos juntos, só não o faz quem não deseja.
Uma dia assisti, num cinema, aqui mesmo em minha querida cidade, a um filme de nome : “ O curioso caso de Benjamim Button”.
Nem seria de bom alvitre comentar-lhe a sinopse, mas o faço. O Benjamim nasce idoso e rejuvenesce à medida que o tempo passa. Doze anos depois do seu nascimento ele conhece a Daisy, uma criança que entra e sai da sua vida enquanto cresce para ser dançarina. Embora tenha todos os tipos de aventuras incomuns, sua relação com a Daisy o faz acreditar que os dois se encontrarão no momento certo das suas vidas”. A partir de aí não me recordo mais o acontecido.
O que o filme, que me fez pensar neste meu texto, de importante quero retratar, não com meu celular, o pobre tem a memória lotada de instantâneos que meu cotidiano pede para selfiar ( fazer selfies), é a capacidade, ou não, melhor não, de a gente conseguir rejuvenescer. Ir, como o velho que nasceu velho, um dia voltar a ser menino, bem sei que o final do filme foi triste, como a vida pode ser. A gente é que escolhe, entre a alegria e a tristeza, por que caminho seguir.
Um dia, numa festa entre médicos e partícipes, promovida por um plano de saúde de bom conceito, dirigido por qualquer de nós, um colega, talvez ensejado por uma bebida que o fez ficar meio desnorteado, alegre, de bom humor, me disse, ao me cumprimentar, a seguinte frase, sobrepondo ao meu nome outro sobrenome que não o Rodarte de Abreu.
Imaginem! Ele me chamou de Paulo Button. Só faltou mudar o Paulo por Benjamim.
Na hora fiquei aparvalhado. Assustadiço, controvertido.
Assim que a oportunidade se apresentou, fui com ela ao banheiro, não para urinar, ou vomitar. Não havia bebido quase nada, apenas algumas caipirinhas bem suaves, dois copos de cerveja bem gelados, e só.
Fui logo ao espelho. Não o perguntei : “ Espelho, espelho meu, existe alguém, o senhor conhece, alguém mais lindo do que eu”?
A pergunta que desferi, a queima imagem, àquela superfície dedo-duro, que não sonega idade, nem diz a gente que a mocidade se foi, foi esta: “você pensa, de fato, que estou desenvelhecendo? Ou seria mais um chiste do amigo colega”?
Confesso que a resposta dada pelo espelho me fez mais ainda intrigado. “É verdade”, “espelhificou” ele.
Não caí de costas depois ao ver a cara apalermada do espelho sorridente. Quase cri, foi por pouco.