Pra ele, Zé Rapadura, a vida não estava sendo fácil.
Nascido e crescido, apesar de nem tanto, num pedaço de chão tão pequeno que, quando uma das duas vacas deitava a pobre deixava o focinho e uma das tetas do lado de fora da cerca. E quase sempre, a maior parte das vezes aparecia, do nada, um vizinho arreliento, de nome Nicanor, que, por pura maldade pior não apenas cortava o rabo da vaca assim como furava o mojo da Braúna, provocando, depois de assentar a tal mosca do berne, uma bicheira horrenda, que acabava por infeccionar. Lesando de maneira irreversível o enorme úbere da melhor vaca do curral, a outra era inferior, a qual não se avexava se algum safado da cidade a chamasse de vaca.
Mesmo assim Zé Rapadura, estoico, valente, sério e de bom humor, não esmorecia quando as adversidades ali punham as mãos lisas, homem da roça tem mãos ásperas, doutor da cidade as exibem fininhas e macias, sabem a textura da mão da adversidade? Ela tem as cores e sabores da capacidade da gente saber enfrentá-las, tudo depende da coragem de que somos dotados. E o valente Zé Rapadura tinha coragem e sinceridade para dizer o que seu peito ditava. Embora por vezes desagradasse os interlocutores. Pra ele não dava em nada.
A vida continuava mansa, monótona, para essa boa gente do campo.
Era um acordar com as galinhas. Lavar o rosto, via de regra, barbudo. Tomar um cafezinho requentado, acompanhado de uma broa de milho, pão francês, mesmo sem sotaque da França, ali era iguaria, comparada a caviar e champanhe Moed. e Chandon, para os endividados, como a maior parte da população brasileira, nestes tempos de crise não apenas financeira mas principalmente moral, e ia cedo ao curral, espremer, com os dedos duros das mãos, naquele começo de inverno frio, iria ficar ainda mais.
Os quase vinte e cinco litros de leite frio, na temperatura com que sai da vaca era bem mais, mas espuma logo abaixa, mal davam para pagar a canequinha de ração, a qual comprava fiado na cooperativa que um dia foi à bancarrota, pior ainda a safra de milho plantada na época certa, só que nesse ano não choveu, e tudo veio a se perder, produzindo um rombo enorme na conta do banco que sempre ficava negativa, ficando o empréstimo tomado à espera de dias melhores, os quais nunca apareciam.
Zé foi ficando velho. A idade provecta lhe montava na cacunda curvada sob o peso pesado dos anos.
No ano em que tudo aconteceu ele contava com mais de sessenta e sete primaveras. Embora se sentisse no outono da sua vida.
Ele ainda não conseguira se aposentar. Embora levasse à agência do INSS mais de cem atestados de mais de cem ortopedistas de várias unidades de saúde, comprovando-lhe a invalidez, a coluna do pobre mais parecia um bambu curvado sobre o vento malvado da semana que morreu faz tempo. E ele, o Zé Rapadura, um dia, mais cedo ou tarde, fatalmente iria baixar à sepultura sem a felicidade de ser mais um a receber, todo começo de mês, a malfadada soma que sempre suspirava com amargura muito antes do começo do mês.
Um amigo de pasto, recém-aposentado, lhe fez um inconfidência mineira. Se aparecesse na tal agência, onde gente de todo lado fica a espera da tal abrir as portas, todo mundo chega duas horas antes, para se submeter à perícia, aí a historia seria distinta. A sonhada parada para respirar, deixar as duas vacas no açougue, receber, no começo do mês a bagatela mixuruca de um salário de fome, mínimo para atender-lhe as necessidades máximas, agora por certo seria um sonho concretizado, finalmente.
Mas, naquela malograda manhã, fria, uma névoa molhada cobria a pastaria, não deixando o rabo da Braúna e da sua irmã a mostra, nunca seria demais lembrar que o rabo dela ficou pelo meio, não conseguia espantar mosquito, por isso se imbernava toda, quando Zé Rapadura, todo feliz da vida, levando no embornal mais de mil comprovantes de incapacidade laboral, foi, de carona no caminhão leiteiro, à cidade da agência do INSS.
Quando ali chegou, antes das cinco da manhã, finado mês de março, quase dia da mentira, deu de coco na porta fechada da casa dos aposentados. Já uma fila enorme se formava à entrada de vidro Blindex novo, a ex foi quebrada a pontapés a semana passada, durante uma manifestação contra a nova lei da previdência que o novo governo queria pôr em votação.
O sujeito que estava logo à frente do Zé, bem mais antigo que ele, já ali estivera desde quando a serra estava em formação. O seguinte mais tempo ainda.
Zé Rapadura estava sonolento, não conseguiu fechar os olhos, de ansiedade, pois, a vida inteira dormia demasiadamente bem, mesmo acordando cedo.
Foi quando passei por ele. Na minha descida da rua, rumo onde estou.
Foi quando avistei, de relance, o bocejo longo do Zé. Na sua boca aberta não se via um dente. Nem um sorriso de satisfação. Mais uma vez a aposentadoria do Zé foi deixada para o ano seguinte. Quem sabe o próximo? Nem eu, aposentado, parte de mim, saberia dizer.
Só sei que o bocejo do Zé foi lindo, sonolento, recheado de desalento e constrangimento, por não conseguir o merecido descanso após uma vida inteirinha assentado àquele banquinho tosco, tirando leite branco da vaca preta.