Aquele senhor, do alto da idade inimaginada por ninguém, tinha alguns motivos principais para atingir quase cem anos, os quais iria completar na próxima primavera, e olha que ela estava prestes a acontecer: nunca aposentar a enxada, a foice dormia ao seu lado, já que a esposa dormia noutro quarto, e, principalmente o bom humor, a alegria de viver, dormir ao ver as galinhas se dependurarem no poleiro, a vacada ir ao curral, de mansinho, ávidas por verem os bezerrinhos saltitantes de felicidade ao verem a mãe, que apenas conheceram no dia de ontem, os canarinhos da terra ciscando o esterco do curral, a chuva cair de mansinho, inesperadamente, a tintar de verde mais verde a roça de milho que ameaçava não ir adiante, e, por fim, não sonhar que careceu de mudar pra cidade, num dia de extrema tristeza, e acordar de um sono pueril, tendo de viver outros cem anos no mesmo lugar onde tinha o umbigo enterrado, ao lado de um coração apaixonado, portador de uma mente ainda lúcida, longe da treslouquice da azáfama da cidade, que sabia de tudo que acontecera no verão passado.
Por essas e outras razões, quem disse que a razão prepondera, num mundo insano que a gente mora, sujeitos a toda sorte de indefinições, desilusões, esperanças rotas, caminhadas trôpegas, e desventuras hostis o meu querido ancião chegou à idade avançada na qual se encontra hoje?
Sempre que quase chego ao meu pedaço de paraíso terreno, um dia ele vai se tornar um lugar onírico, de fato lindo, maravilhoso, quando eu puder me mudar para lá, não vai ser preciso trajar minha roupa tida como elegante, camisa de manga longa, calça de cor não muito berrante, o berro sai da vaca e do meu coração errante, carregado de sofrência, cheia de vincos bem passados, cueca a qual dispenso, minha caríssima esposa faz questão de que a use, aí sim, vou ser completamente feliz, tomara para sempre, embora saiba que o para sempre apenas dentro da gente seja mais uma utopia ilusória, que termina assim que na cidade acordo, não sentindo dentro do peito vazio aquela sensação maravilhosa de acordar na roça.
O tal senhor, na longevidade em que a vida o colocou, nos braços tortuosos da existência, é meu vizinho de pasto desde quando pela estrada poeirenta ou barrenta passo, a menos anos do que ele tem de idade.
Hoje em dia não tem sido comum encontrá-lo, por volta das cinco da tarde, assentado àquele banco de pedra, uma laje antiga, talvez ela tenha nascido no ano em que ele veio ao mundo, olhando o movimento parado dos carros e das motocicletas que delas exalam poeira, na época da chuva é muito mais saboroso ficar assentado ali, não sei por qual motivo. Talvez o meu amigo idoso, que bem poderia ser meu avozinho querido, que se tornou estrelinha noctívaga no céu escuro, nas noites enluaradas, por dormir cedinho, não assiste à novela das oito, que nunca começa antes do jornal, a ele só interessa a previsão do tempo e o Globo Rural, quando passo perto da sua porteira, correndo, pondo as pernas em movimento ou a bordo da minha pratinha valente, Seu Zé Antônio, seu primeiro e segundo nome, com quem tenho mais de dez fotografias na memória do meu i-phone novo, dois de seus filhos não se deixam fotografar, segundo eles postar em selfies dá azar, quando perto dele desfilo ele já dormiu, abraçado a sua santinha de devoção de nome Nossa Senhora Aparecida. O mesmo nome da sua esposa querida, que, se não me engano é Aparecida.
Outra característica dele, do seu Zé Antônio, além das todas que enumerei atrás, e a expressão que ilustra o título do meu escrito de hoje cedo: “Ah!, não”!
Ontem, de retorno da minha rocinha pequetita, agora arrendada a um experto em tirar leite branco da vaca preta, que belezura estão as suas vacas, antes grande parte eram minhas, agora as passei adiante, a fim de ver a quantas anda a construção da minha casa nova, onde pretendo escrever mais de dez romances, caso minha inspiração não me abandonar, ao passar adiante da casa do amigo Zé, tanto na ida quanto na volta, deparei-me com ele assentado a mesma laje de pedra marmórea, creio que ela ali mora desde quando a amora foi descoberta num campo baldio, e passou a ser a preferida de ser chupada pelo garoto menino que morava em mim, e, tomara noutro dia ainda vai morar.
Ele me saudou com um “Ah!, não” pra lá de risonho. Na primeira vez não parei. Tinha pressa de chegar ao meu destino, pois um jovem construtor me esperava na sua impaciência angustiada, nas barbas da minha nova casa, para trocarmos inconfidências sobre a estrada que ele retocava, desde há uma semana atrás.
Já na segunda não resisti. Como o seu Zé Antônio, o “Ah!, não”, não estava presente, a laje de pedra dura pediu a ele licença para dormir, parei a pratinha valente perto da porteira rangedora, amarrada com uma corrente, presa a um prego gigante num mourão de cerca, e por ali adentrei. Nem toquei o interfone. Ali, na roça o interfone é o latido dos cães, o cacarejar das galinhas, o matraquear das maritacas ao tempo de jabuticaba madura, a azáfama dos bezerrinhos berrando de saudade das mães vacas, e outras coisas mais, que na cidade não se usa.
Ele e sua patroa boa estavam se preparando para deitar na cama larga, com os lençóis, não de linho branco, muito menos acetinados, e sim de um pano limpinho, feito de sacos de ração para vaca, ou de outro tecido de onde exalava um odor fresco de orvalho da madrugada.
Como de sempre fui-lhe ao encontro com um cordial abraço e uma boa tarde, quase noite, fraternal e amistoso. No que ele me retribuiu com outro agudo “Ah!, não” mais sonoro do que o grito da seriema assustada com o passar do carro.
Para finalizar esse texto, se tivesse tempo ele se estenderia além da planura do horizonte infinito, dentro da infinitude de Deus pai, gostaria de deixar escrito, além da admiração que dentro de mim muge pela boa gente da roça, o meu aperto de braço, sem a intenção de enlaçar ou laçar os braços fortes do amigo Zé, dono de uma longevidade bem explicada, que, geralmente os anões são seres de diminuta estatura, não moral, bem entendido.
Acontece que ele, com seu amistoso e feliz “Ah!,não”, não se trata de um anão pequeno. Pois o Zé Antônio é bem maior, por tudo que seus anos longos me ensinaram, um gigante de pessoa, e de maior coração. Que bem o digam seus filhos, netos, bis, caso os tenha, por muitas e muitas gerações.