Mente inexpugnável de um Donatelo brasileiro

Dizem os compêndios de história, sobretudo aqueles versados em Itália, que Donato Di Niccoló di Betto Bardi, conhecido por Donatelo, nascido em Florença em 1386, vindo a falecer em 13 de dezembro de 1466, foi um escultor renascentista que deixou obras fantásticas, dentre elas se podem destacar: São João Evangelista e Madalena. Ele trabalhou em Florença, Prato, Siena e Pádua, tanto em mármore, bronze e madeira, deixando seus traços perfeitos em esculturas em baixo relevo. Era um irrequieto personagem que a bela Itália deixou, oriundo de família modesta. A história da arte renascentista vai se lembrar dele por anos a fio, como eu nunca vou me esquecer do dia quando meus olhos bateram naquela figura estranha, magricela, jovem, de pele clara, fala macia, às vezes ininteligível, um tanto vergado sobre ele, poder-se-ia dizer um tanto corcunda, com exagero.

Foi no vestiário de um clube aonde sempre vou, ao final da tarde, para tentar esquecer de que o velho já se apossou de mim, embora pessoas que comigo convivem dizem, talvez para me agradar: “Paulo, você diz que tem 67 anos? Não parece”. Já o espelho me confidencia que pareço sim, ou mais.

Era uma segunda-feira, final do mês de março. Foi um dia antes de ontem.

Tive de me trocar naquele confortável local onde nadadores trocam os trajes do cotidiano por sungas mais em conformidade com as lindas piscinas semi-aquecidas, onde me lanço depois da academia, para nadar um cadinho, já que as longas distâncias reservo às estradas, ou correndo na esteira, na academia que me atura bastante mais.

Foi quando percebi, meio enviesado, olhando de lado as outras pessoas, a tal figura esdrúxula ajudando a um menino, a cara dele, de menor altura, sem o par de óculos claros como lhe era a pele, a se trocar para ir embora.

Não sei explicar o motivo pelo qual me dirigi a ele. Talvez por um singela razão: as pessoas fora do padrão, de fora da normice do dia a dia, atraem a minha mente irrequieta, a procura do que escrever.

Na hora perguntei ao nosso Donatelo brasileiro se era ele o pai do menino artioso, que me olhava de esguelha, tentando escutar a música que saía do fone de ouvido, oriunda do spotify do meu i-phone sete. “Não, ele é meu irmão do meio. Tenho outro em minha casa, três anos mais jovem. Eu cuido deles dois. Como se fosse o pai, que hoje não tenho mais o de mesmo sangue, outro melhor cuida de minha família, que se resume a nós três e as lembranças tacanhas e indiferentes do meu progenitor com a mesma tipagem sanguínea dos meus dois irmãozinhos menores, e do meu”.

Ainda proseamos por alguns minutos baldios. Na hora aprendi que o meu recém amigo, filho de um funcionário do clube, que naquele dia não estava presente, ele iria trabalhar amanhã de manhã, quando o conheci, realmente.

De pronto, a primeira impressão que o Donatelo me passou foi ser um tanto quanto extravagante. Meio nerd, uma pessoa mutante, aqui despejado por um disco voador, um ET, quase igual ao que dizem ter aterrissado em Varginha em tempos idos. Ainda não acredito nele. Como passei a acreditar na inteligência do ET lavrense.

Na hora da despedida, não sabia se iria vê-lo em outra data, fiz-lhe um oferecimento, depois de ter depreendido que ele gostava de ler. “Quer ganhar meu último livro”? Cujo nome é Mugido de Vaca e Cheiro de Curral? No caso de ser positivo compareça ao meu consultório amanhã, na parte da manhã, por volta das oito horas.

Depois da primeira consulta do dia minha especial amiga, enfermeira de mancheia, de nome Zaninha, anunciou-lhe a presença, ela já esperava pela visita do meu novo amigo, o Donatelo ET lavrense, para mim agora seu nome completo vai ser dessa forma.

Fiz, na hora, a dedicatória na página segunda do meu livro novo. Não me recordo mais quais garranchos foram. O fato é que ele ficou deveras satisfeito com o presente.

Antes que ele me desse as costas, ainda me lembrava da nossa prosa amistosa de ontem, pedi-lhe, meu novo computador estava um tanto lento, em contraste a minha hiperatividade em escrever, mercê da notável e assumida ignorância em informática, quando meu computador trava quase me lanço da janela do sétimo andar onde escrevo e exerço a urologia, quem sabe o Donatelo desse jeito nele.

Na hora seus olhos brilharam. Percebi dentro deles uma chama incomum. Ele, assentado a onde estou, na cadeira giratória do médico escritor, ficou momentos parcos perscrutando a inteligência daquela máquina preta, que mal se deixa ver abaixo do tampo da mesa, que suporta não apenas os meus repentes de ira, como o teclado novo que atura o furor dos meus dez dedos ágeis, só não uso os que se escondem na intimidade do meu par de tênis.

Como tinha de sair em busca da complementação da renda que me oferece a clínica privada, que tem sido minguada devido a crise avassaladora que venta lá fora, deixei o ET lavrense, o Donatelo brasileiro, em companhia boa da minha querida Zaninha. Pontualmente chego a um posto de saúde local, bem perto daqui do sétimo andar do meu consultório.

De novo, na parte da tarde, quase na virada das duas horas para as três, meu novo amigo aqui aterrissou. Sem a nave espacial que trazem e levam os ETs aos seus planetas de origem. Não sei, até o momento, qual o do Donatelo.

Ele continuou a medir forças com a CPU do meu computador novo em folha. Ficava de perto, tentando entender em que idioma eles conversavam. Deveria ser num dialeto nérdico, bem distinto do meu.

Por fim, depois de quase duas horas de desentendimento de minha parte , ele e a máquina acabaram se dando às mil maravilhas, meu computador acabou capitulando-se. Ficou mansinho como o cavalinho Theo, o qual amo a exaustão, lógico que bem menos que adoro meu netinho Theo, como a sua mãe, e meu genro, progenitores do Theo neném.

Meu aple watch indicava mais de quatro horas da tarde quando deixamos juntos a sala ampla da minha oficina de trabalho.

Donatelo e eu saímos ombro a ombro. Falando de tudo um pouco, falamos do nada.

A mente inexpugnável do Donatelo brasileiro me encantou. Tanto ela quanto ele, pessoa. Tomara seu talento seja um dia reconhecido, como o do outro Donatelo, oriundo da bela Itália. E o futuro lhe dê o devido valor.

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