Chorosa despedida

Hoje o dia acordou molhado. Uma chuvinha mansa se despregava de cima fazendo a terra, onde morava a estoica dona Madalena sorrir de contentamento depois de uma estiagem demorada, pobre desventurada balzaquiana, que morava solitária nos ermos lados de onde todos se esqueceram dela, menos a saudade doída do marido Tião, o qual se despediu da vida dura há coisa de dois anos passados, talvez menos, após sentir por dentro um cancro enorme apossar-se de suas entranhas frágeis, reduzindo-o a um amontoado de ossos moles e cartilagens apenas, já que a gordura que morava por baixo da pele e a musculatura que já ali viveu se converteram em sombras, nada mais.

Dona Madalena, Madá, como todos a conheciam, passou tempos curtindo uma depressão profunda. Foram mais de dois anos entregues a uma cama, onde passou mais de trinta anos ao lado do marido, entre chamegos e entrelaces profundos, sem sequer conseguir ver nascer sequer um filho, não se sabe, não quiseram saber, se por culpa dela ou do valente Sebastião.

O que a salvou da inanição, de se dependurar até se constatar pronta a um caixão, num galho firme do lindo pé de abacate o qual se deixava ver da janela da sala de visita, onde poucos davam o ar da desgraça, foi a tenacidade com que ela se agarrava àquela rocinha desencantada, que jamais deu um pingo de lucro, mas para ela e o marido morto era um degrau derradeiro de se chegar ao paraíso. Ambos amavam aquilo tudo, que pra muitos era apenas um nada.

Depois de sair do ponto down, quando foi ao fundo do poço, um lugar escuro donde não se via a luz do dia, era sempre a escuridão da noite que no alto alardeava a sua presença lúgubre, Madá retomou as rédeas da vida, qual quando a gente toma, com mãos firmes, o cabresto do cavalo inteiro cheio de testosterona a fazer dele um furor ao ver uma égua no cio, e de novo enfrentou, de peito aberto, as vicissitudes da tarefa a ela confiada desde a tenrice dos dezoito anos, quando era uma formosa rapariga, ainda virginal, o falecido Tião fora o único homem da sua vida singela, eram apenas ele e ela, sem uma fita amarela a embalar os sonhos descoloridos de azul que mal contavam as suas histórias. Entremeadas de sorrisos e lágrimas deitadas das quais não davam conta de enxugá-las nem um batalhão de lençóis, muito menos alguns lencinhos brancos ou encardidos pelos prantos chorosos.

De segunda a segunda dona Madá se desdobrava desde a capina das ervas daninhas que tentavam tomar conta do seu lindo jardim, cheio de margaridas gentis, petúnias multicores, gérberas bicolores, e algumas arvorezinhas plantadas pelo marido nunca esquecido, de nome azaléas choronas; e as outras incumbências próprias a mãos de homens, como tirar leite, apartar os bezerros, raspar o esterco do curral, quando molhado pesava tanto, roçar a pastaria morro acima ou em direção ao baixio, subir com os latões de leite cheios quando o caminhão leiteiro não descia ao curral, por causa do barreiro que a chuva formava, e coisas mais, a menos, que apenas o homem do campo se acostuma a fazer, como muita gente, desocupada, passa horas vazias num banco da praça, a falar da vida alheia, a fofocar sobre a mulher dama, com fama de boa de cama, que nunca se deitou com nenhum deles. Era apenas uma profissional de respeito, que vendia o corpo quando ainda podia, na finalidade precípua de dar sustento a uma boquinha faminta, nascida sem previsão depois de uma deitada sob um macho que, depois de uma cantada esperta, tomou-a nos braços, abriu-lhe as pernas grossas, e ali dentro, no quentume de uma gruta aveludada, depositou miríades de espermatozóides, apenas um deles teve sucesso na viril caminhada entre tantos que iam adiante, a fim de fecundar o óvulo expelido das trompas naquele exato instante mágico.

Já recuperada da depressão por que havia passado, dois meses depois, dona Madá conseguiu preparar a terra, de uma gleba plana, na parte mais alta da sua roça, graças ao esforço de dez bois de carro, bons de arado, mesmo depois de capados. Aquela terra arada, depois passaram a grade por cima, ficou uma belezura. Antes, na seca que ficou atrás, um vizinho de pasto da dona Madalena, teve a sensatez e a camaradagem de ali depositar incontáveis carroças cheias de esterco curtido, conferindo a terra a capacidade de estar adubada ao desvario, melhor que qualquer adubo químico que ali jogassem, na medida exata receitada por entendedores de plantas, os engenheiros agrônomos que tanto são necessários a produtividade da terra boa brasilis.

A safrinha de milho foi plantada em meados do mês de março. As derradeiras águas de março deram ao ar das suas graças assim que a semente foi inserida a terra. Depois neca de chuva mais.

Em menos de duas semanas os pezinhos de milho já punham as mãozinhas de fora. Era lindo tal nascimento, quase igual ao da bezerrinha feminha que a vaca Mimosa trouxe depois de estar desaparecida desde a noite de ontem quando ela se escondeu na intenção de parir.

Mas, o tempo passava, como os anos passarinham, a chuva, resto de agua do céu, parecia ter esvaziado a caixa d’água de São Pedro, pai da chuva, nada de ela despencar, de mansinho, aquela chuva criadeira, tão aguardada pelos homens do campo.

Dona Madá, já angustiada, desesperançosa de a roça nova de milho não vingar, não dormia, fechava os dois olhinhos, contava carneirinhos, passou a tomar meio comprimido de Bromazepan, e nada de efeito sonífero conseguir.

Todas as manhãs, antes do galo cantar, depois de ordenha, de alimentar a porcada sempre com as bocas grunhentas, famintas até o dia do abate, subia o morro topetudo, sempre a pé, e constatava, olhos suplicantes e lacrimejantes, a roça de milho novo em vias de virar um monte de pezinhos de milho secos, folhinhas retorcidas, sem a cor verde característica de um milho sadio.

Já desesperada pelo sofrimento da safrinha, e com o dela próprio, dona Madá, numa manhã, dia derradeiro do mês de março, ao fazer uma visita a sua roça desencantada pela sorte madrasta, sem esperança de do céu cair chuva, o dia estava radiosamente azul, assim que deitou os olhos nos pés de milho novinhos, já sem ares de se converterem em pés de milho adultos, cheios de espigas maduras, que depois secam e vão ao silo, a grande senhora da roça, mulher valente como a minha, depois de uma oração curta e objetiva, quando pediu ao Deus Pai, todo poderoso que intercedesse entre ela e São Pedro, e fizesse a caixa d’água do céu transbordar, sob a forma de gotas graúdas, nuvens cinzentas, que não se viam, escureceram o azul do céu.

Foi uma chuva mansa, gotinhas finas como as de hoje cedo, que ainda caem sem parar, que, num átimo, num instante, tintaram a terra onde a safrinha de milho foi plantada, de desbotada num tom de terra molhada. A roça de milho vingou, de repente. Tudo se metamorfoseou de um verde palha, num verde mata escura. Foi um sucesso a colheita desse ano em curso.

Mas foram as últimas chuvas do ano. Uma chorosa despedida…

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