De quando em quando, em momentos vazios, ao me sentir de mal comigo, introspectivo e ensimesmado, carente de tudo, sem saber o motivo, mesmo ao sabor de dias lindos como o de hoje, sol a pino, nehuminha nuvem no alto, mesmo sabendo que as águas de março carecem de cair, na roça todos rezam contritos pelas derradeiras chuvas do meio do ano, ao invés de falar da vida reflito, em momentos de turbulência dentro de mim, ouso comentar sobre a sua antítese, que aparece quando menos se espera, na sua carruagem puxada por corcéis negros como a noite, vestida de preto, sob manto de uma fantasia de caveira mostrando os ossos do esqueleto, antes, em criança, assustava-me com seu aspecto fantasmagórico, hoje não mais me mete medo.
Falar sobre a morte afasta os amigos. Talvez aqueles fragilizados, acamados, perto da partida, não seja assim. No entanto, ao comentar sobre a morte com pessoas vendendo saúde, sei que não se compra saúde numa banca de feira livre, nem numa gôndola de supermercado, muito menos a prazo ou a vista, com tais pessoas falar sobre ela bem sei que todos evitam. Poucos são os casos quando este diálogo lúgubre, taciturno e escuro, de fato prospera, vai adiante, sem conclusões oportunas e oportunistas.
Quem já não teve um interlocutor com um pé na cova, faço um parêntesis para falar do caso de um amigo de bem mais idade que a minha, velhinho simpático, ainda vivo, tomara longe do ocaso, o qual, num dia de sol como este, parando ao seu lado, num dia de pouco movimento, o mesmo amigo idoso me contou essa piada: “sabe? Na idade que conto agora, velho como a velha árvore prestes a ser derrubada, tenho evitado ir ao cemitério”. “Por qual razão”? Inquiri-o, de chofre. Foi quando dele obtive a resposta: “quer mesmo saber? Caso tenha algum desafeto às minhas costas, à beira da cova fresca, de boca aberta, sem ninguém a receber, de momento, já que outro defunto ainda não chegou, o tal amigo da onça pode me dar um pontapé no traseiro, e eu, desavisado, cair nas profundezas da terra e de lá não sair, nem que eu queira”. Ri da sua piada, de bom paladar, rica em humor, coisa que falta nas ruas, no meu âmago ele transborda como o riacho mercê da chuvadonha de ontem, embora muitos considerem falar da morte como anedota de mau gosto. Sei que na vida esperneiam bons e maus gostos, o difícil é saber identificar onde começa um e termina o outro.
Ainda sobre o mesmo tema, tenho um amigo, que comigo comunga de dois prazeres, tanto de ler quanto de escrever. Nos derradeiros tempos ele não tem escrito. Tenho, cá comigo, uma resposta para tal alienação a não deitar sobre as teclas do computador páginas recheadas de crônicas, de romances que ele escreveu, um deles, de formato de bolso, cheio da ação, entremeado de sexo e concupiscência, não tirei os olhos de suas páginas até a última linha. Creio, se minha lembrança não me atraiçoa, que o título do livro era “Sonhos da Noite”.
Meu amigo, colega escritor, jornalista criativo e criador, está submisso a uma pertinaz enfermidade, lutando contra a morte, há tempos largos, anos e anos, desconsidero quantos.
De vez em quando lhe faço uma visita de médico. Não como médico, que sou. E sim como amigo, que me considero.
Ontem, no debrum da tarde, quase noite, domingo, março quase agônico, ao passar alguns minutos na casa da minha sogra, pessoa que para ela a vida não é sinônimo de morte, tal a exuberância no sorriso que da sua boca emerge, sempre ela sorri, mesmo mercê das dores que a atormentam, dadas às quedas que a sua longa vivência lhe proporcionam, fui descendo a rua, a passos rápidos, até a casa desse meu amigo, o escritor que parou de escrever por estar tentando vencer a morte, mesmo sabedor que um dia ela chega, sem querer querendo.
A porta da sua residência estava aberta. Ele tinha visitas. Eram pra mim desconhecidas, como a morte ainda o é. Entrei, sem me anunciar. Ele, meu amigo jornalista, acolheu-me com o melhor sorriso advindo-lhe dos lábios. Com uma expressão de pura felicidade, mesmo sabedor de que a fatídica morte, com sua foice enorme, feições de puro fim de vida, um dia vai encontrá-lo. Tomara ela tarde sempre. Como tem feito, desde quando o conheço.
Com o tempo aprendi que a ternura é uma planta que floresce independente da aridez do solo, da estação e das chuvas, basta apenas espalhar sementes. Como aprendi a gostar de gente, quando em mais idade, simplesmente. Antes, mais jovem, refém de desventuras entre iguais, preferia estar entre os animais.
Durante a visitinha fugaz de ontem a tarde, noite, depois que as visitas que me precederam se fizeram ausentes, ficamos, apenas o cuidador de meu amigo, sua fiel e dedicada esposa, e este escritor, tentei desanuviar o ambiente, onde a morte se anunciava, falando de amenidades, de coisas mais alegres, embora a alegria que sentia cá dentro fosse um tanto quanto amenizada por saber que o estado de saúde do meu amigo não era dos melhores.
Não sei quantos minutos se passaram. Foram quase tantos que o encantamento por estar com ele logo se desfez, como um raio que passarinha pela noite escura, e logo vai ao chão, deixando atrás de si um trajeto luminoso, sob o ribombar ruidoso de um trovão.
A volta a casa, não sem antes passar em outra residência, onde mora a vida por começar, na pessoinha linda do meu netinho Theo, que bom constatar no sorriso de uma criança que a morte ainda se faz distante, no meu caso não sei quanto tempo me resta, no caso do meu amigo que luta, com as poucas armas de que a medicina a ele oferece, sei que sua estoicidade ajuda a retardar a chegada daquela carruagem puxada por corcéis negros noites sem lua, próprias do inverno, não sei por quanto tempo a vida ainda lhe reserva.
Deixei-lhe a casa sem falar na morte. Em comum acordão falamos sobre a vida. Tomara esta mesma vida se prolongue ad-eternum, apesar de a eternidade ser mais uma utopia minha, das tantas que me acarinham, nessa altura de quando percebo a mocidade se distanciar tanto, tanto, que nem mesmo sei contar…