Hoje, por volta da volta do meio dia, ao voltar do meu pedaço de chão, nos cafundós do sertão de Ijaci, não sabia se escrevia sobre dois temas, a seguir: sobre a luta contra a morte de um amigo querido, ou sobre o acontecido na manhã deste sábado, que começou quente, sem sombra de chuva no alto, depois de uma cavalgada pequena, olhando cafezais enormes do alto do meu cavalinho do mesmo nome do meu netinho lindo, os dois foram batizados de Theo, pastaria enverdecida pelas últimas chuvas, as águas de março têm feito verão.
Decidi-me, talvez pelo cenário lindo, pelo segundo, pois sobre o assunto morte quero deixá-lo por inteiro na vizinhança da minha partida, tomara o assunto ainda se alongue para além desta vida.
Nunca consegui ir ao epílogo na leitura deste marco da literatura brasileira, escrito por um colega de profissão, que inovou palavras, recriou assuntos velhos com verniz de novo, distribuindo letrinhas miúdas por um calhamaço de papel, nomeado de Grande Sertão: Veredas. Foram não sei quantas tentativas, malogradas talvez por preguiça de ler, sou mais de escrever do que o faz meu filho mais velho, Stenio, que devora livros como o cupim devora madeira sem muito cerne.
O Parque Nacional Grande Sertão Veredas existe hoje, no município de Formoso, nas nossas Minas Gerais. O livro tem como protagonistas o jagunço Riobaldo – conhecido por Tatarana ou Urutu Branco e Diadorim, não se sabe se como um casal enamorado, ou apenas amigos velhos, quem sou para deslindar o mistério? Um rio, chamado da Integração Nacional, o Velho Chico, compõe o cenário lírico. Guimarães bem o disse: “o rio São Francisco dividiu minha vida em duas partes”.
O romance épico tem esse começo: “Nonada, tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvores do quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto”. E aí vai, por mais de não sei quantas páginas de inspiração profunda, um dia ainda termino a leitura, talvez depois de aprender a escrever nem que seja um tiquinho como ele.
Sábado é dia de regozijo. Dia de me desvestir da roupa de médico, quem disse que médico ainda usa branco comete sonoro engano.
Não me acostumei à botina gomeira. Tenho uma comprada na Alemanha, preta, luzidia, macia, que fica embaixo de uma mesa de passar roupa, na lavanderia da casa onde moro.
Um dos pares de tênis usados na correria dos dias após dias são mais confortáveis, embora possa ficar entalado no estribo da sela que veste a perfeição o lombo ancho do meu querido potrinho Theo. Recém-castrado para acalmar-lhe o facho, que, infelizmente, perdeu a vista do olho esquerdo, justamente por onde se monta, depois de um acidente que não vem ao descaso. Um dia, tomara, consiga melhorar-lhe a aparência, inserindo-lhe uma prótese na cavidade onde estava o olho perdido, tomara um oftalmologista veterinário seja capaz de tal façanha plástica, tão somente, já que em nada prejudicou-lhe a marcha a visão unilateral.
Ao chegar ao meu pequeno sertão veredas, de fato tão pequeno que quando a vaca deita o rabo fica de fora da cerca, percebi o amigo Roberto, o mourejador arrendador do local com a aparência atribulada. A esposa, dona Lúcia, como de sempre foi levada à Ijaci para acudir a linda filha mais velha do casal. O frangão, guardado no congelador desde a semana passada, de novo vai ser almoçado no próximo sábado, já no mês de abril, oxalá não seja mais um primeiro de abril mentiroso.
Não importa onde almoçar, na roça se come cedo, quase como as galinhas deixam o poleiro, mais sujo que meu tênis ficou depois da cavalgada de hoje.
A dona Bela, realmente se trata de uma linda mulher, quase igual a Julia Roberts do filme do mesmo nome, esposa do Élcio, meu pedreiro chefe da casa onde só não vou morar por ser longe do trabalho, e, como não ando de carro vai ser missão impossível vir ao consultório as seis da manha, morando a quase vinte quilômetros de lonjura. Foi na casinha do casal simpaticíssimo que filei o almoço, tomando uma Fanta uva que trouxe da cidade.
Nesse ínterim o bom amigo Roberto e eu fomos pegar os dois animais no pasto, por sorte eles estavam a me esperar, não por mim, e sim pela ração de cavalo que trouxe de Lavras, comprada na véspera.
A mãe do Theo, a égua Cigana, pampa em branco e castanho, prenha de quatro meses de um lindo garanhão- negro- noite- escura, que mora bem perto, do outro lado da represa do Funil, propriedade de um filho do meu amigo apelidado de Tampinha, que saudade dele!, que mora no céu ao lado de dois bons outros amigos, o Gibinha e o Januário, acostumou-se a deixar encabrestar-se no pasto mesmo, já que seu filhote peralta corre do laço como eu corro nas estradas. Com o mesmo tênis de boa marca.
Uma vez ensilado o Theo lá fomos nós dois a visitar a linda casa citada antes, que olha as águas amarronzadadas do lado do Funil como se dissesse: “que linda vista, lugar ideal para passar as noites a escrever, contando no céu as estrelas insones, como se fossem vagalumes estáticos, usando em suas lanternas pilhas duracell, que não terminam quase nunca, embora o nunca seja mais um devaneio meu”.
Deixei o potrinho capado preso ao mourão de cerca da porteira me feita de presente pelo amigo Roberto. Apeei-lhe do lombo, pelo lado do olho cego, e ali o deixei com a barrigueira afrouxada.
Passei sóbrios minutos percorrendo a obra em vias de ficar pronta, tirando fotos com meu celular novo, olhando a vista linda que se debruçava lá embaixo. Não se via vivalma viva ou morta naquele cenário campestre.
De novo montei no lombo do meu cavalinho castanho, cada vez mais bonito, bem cuidado que era pelo amigo arrendador das minhas terras, no sertão vereda de outro ponto de Minas um cadinho longe do grande sertão de Guimarães.
Já era mais de dez horas da manhã. Queria cavalgar um cadinho mais. O Theo precisava de serviço, pois estava ficando vadio, por falta de quem lhe montasse ao lombo castanho.
Subi o morro topetudo, antes contornado pelas Yucas, agora ladeado de pezinhos de eucaliptos miúdos, um dia eles irão crescer, talvez não esteja aqui para ver, meu neto Theo por certo vai. Theo Horse não se fez de rogado. Subiu sem ser preciso usar um chicote, apenas por estímulo dizia: “upa Theo”.
Uma vez no alto do morro tomei a decisão de ir por uma estradinha, cedida anos antes para um vizinho de pasto amigo, de nome Seu Mané, para chegar ao seu pedaço de chão chamado por ele e sua esposa de Sítio Paraíso.
Do alto do lombo do Theo ia observando a safrinha de milho plantada há dias, a espera da chuva, prevista para este final de semana, mas o azul do alto não dizia que iria descer água dos céus. Parece que ouvi do cume da sela um dos pezinhos de milho, mãozinhas ao alto, a implorar em minha direção, como se eu pudesse interceder ao dono do céu, um Deus no qual sempre cri: “por favor, meu bom doutor. Eu lhe suplico. Implore, ore, ao papai do céu que mande chuva logo, senão vamos morrer e todos os meus irmãos, de sede e inanição”.
Confesso que rezei. Não sei se minha breve oração foi ouvida. Amanhã, domingo, vou descobrir.
Em poucos minutos, naquela marcha repicada, produtiva, entre pés de café verdes mata, lá embaixo olhando, vista extasiada, a represa do Funil espreguiçando-se pachorrenta, chegamos a outra porteira, de fácil abertura, onde o infeliz Seu Mané caiu de sua moto e ali ficou a espera de socorro, com a perna quebrada um par de horas vazias, o pobre até hoje manca daquele lado, Theo e eu aportamos nas terras lindas do dono do sítio Paraíso.
Demos uma volta por uma estradinha tosca que rodeia a sua casa recém-modificada. Nada de vivalma por aquelas plagas. As duas casinhas estavam entregues a solidão delas mesmas.
Por baixo, vindo de onde não estava ninguém, de novo abri nova tronqueira. Apeei novamente do lombo do Theo.
Entrei porta adentro da casa do Seu Mané, marido da dona Maria, senhora que noutro dia me recebeu galhofeiramente com um cordial bom dia.
Alguns minutos mais tarde, quando nos preparávamos para voltar adonde viemos, lá embaixo, trazendo dois baldes de leite nos cotovelos, apareceu parte da familhona grande do casal de amigos chegados.
Foi mais uma acolhida amistosa à moda da roça. Uma vez dentro da casa, espaçosa construção, que cada vez espicha mais, contei prosa, desconversei, tomei um cafezinho fresco, passado inda pouco, saboreei um queijo que ainda dessorava. E fui embora, a bordo de um monte de volte sempre. Certo que irei voltar, de novo. Tudo ficou registrado a bordo dos arquivos fatigados da memória do meu i-phone sete.
O trajeto de volta foi curtido minutos prazerosamente saboreados como se fossem os últimos.
De novo o cafezal tinto em uma das tonalidades de verde mais risonhas. Embaixo a cor prateada da represa do Funil. Do lado esquerdo a safrinha que penso ter sorrido em minha direção e a do cavalinho Theo.
Cheguei, de retorno, a casa Amarelazul, cenário do romance Madest.
Desarreei meu potrinho. Ele estaria cansado? Creio que não. Enchi a tampa do latão de leite com a ração vinda da cidade. Ele comeu a se fartar. O amigo Roberto, ainda sem a sua dona Lúcia, que na parte da tarde estaria de volta de Ijaci, ajudou-me a curar a ferida ainda não cicatrizada da capadura recente.
Pena que era hora de partir.
Um dia o grande Guimarães Rosa partiu. Deixou atrás o seu Grande Sertão: Veredas. O jagunço Riobaldo e a amada Diadorim? Não sei bem se foi assim. Um dia ainda completo a leitura do grande livro.
E eu, seu colega de farda, em dupla militância, tanto na medicina, quando na escrita, parti do meu pequeno sertão, de incontáveis veredas tantas. Com as ideias fervilhando de vontade de deitar no papel tantas experiências quantas a minha feérica imaginação me permitir escrevinhar.