Só quem vive na roça, experimentando a troça dos cidadãos da cidade que ignoram que a despensa se enche com o que sai dali, sabe das agruras da chuva quando não chega, e olha que a espera se alongou em demasia, a roça de milho foi plantada no tempo certo, e não choveu a contento, gastou o que tinha na conta aberta a duras pelejas naquele banco perdulário, o qual só faz o empréstimo a juros que escapam ao combinado, naquela horinha chorada quando o pobre produtor rural, dos menores que um grão de arroz miudinho, três quartos, tem de esperar a vez da senha, uma fila enorme se forma na roleta que gira e não anda, ao chegar-lhe a vez, pensando ser, felizmente, ao assentar-se àquela cadeira defronte ao funcionário de óculos que não olham diretamente aos olhos do cliente, diz, cheio de empáfia: “olha meu caro, o banco exige, para destinar a você o empréstimo, dez fiadores, um caminhão de milho novo como garantia, uma boiada de virar a esquina da estrada poeirenta que vai da cidade à roça molambenta, além de cem assinaturas, de pessoas idôneas, que têm curso superior em ciências inexatas, já a sua figura não inspira confiança”.
Não precisa dizer que a roça de milho do pobre Zé da Roça, filho do Antônio Capiau e dona Leonor que Nunca Saiu do Lugar (esse sim lhe era o nome de batismo), não foi a contento. As espiguinhas mais se pareciam à canelinha fininha da vizinha de pasto – a famigerada Capim Novo, prenda rara nos ares da roça, onde mulher, que veste saia com nada por baixo é coisa rara, como a seriema se mostra obesa, coisa que nunca vi, nas minhas andanças pelos arrabaldes do meu pedaço de chão de onde nunca tirei renda, apenas inspiração.
No ano seguinte repetiu-se a história. Mais uma vez o pobre Zé se frustrou, a roça de milho não embonecou, a vacada não aleitou, a cooperativa pediu falência, e os pobres associados foram à bancarrota, sem direito a arroto ou a emissão de flatus, coisa solenemente proibida na missa das dez e meia, que nunca termina antes do almoço. O padre falou mais do que deveria, num sermão escrito na época em que o papa falava latim apenas.
Cansado das desventuras da vida no campo, embora ali tivesse o umbigo enterrado, junto a um coraçãozinho pra lá de sofrido, Zé resolveu, em comum acordo com ele mesmo, já que não tinha com quem repartir as mal querências, fechar as porteiras e tronqueiras, por ele mesmo feitas, e partir, no velho caminhão leiteiro, em meio a latões de leite vazando um líquido azedo, rumo a um destino do qual mal conhecia as indefinições e conflitos de identidade.
Levou consigo a imagem da santinha da sua devoção maior. Era a de Nossa Senhora Aparecida, compra que havia feito, mesmo assim fiado, numa viagem ao santuário de Aparecida, num mês longínquo, do qual mal se recorda de quando foi.
No embornal furado, que trazia na lona gasta sinais de mordida de rato, trouxe dez mudas de roupa, entre camisas, cuecas e calças desbotadas, duas escovas de dente bem gastas, um tubinho de pasta pela metade, dois sabonetes que ganhou de presente de aniversário, que caiu no meio do mês passado, e, creio, foi só.
O caminhão leiteiro, dirigido pelo amigo Elói, deixou-o pertinho da praça central. No mesmo espaço verde, fronteiriço ao banco onde, tempos antes, havia passado o maior constrangimento da sua vidinha humilde, desde quando o Papai Noel, no qual cria de verdade, até quando, véspera do Natal, percebeu o pai depositar aos pés da arvorezinha do mato, colhida ali pertinho, um pequeno embrulho que até hoje guarda, num velho baú de guardados, nas profundezas escuras da saudade tanto do pai ausente quando da velha mãe, sempre ao lado dele quando mais precisava.
Apeado na praça central o ex-sitiante, de nome Zé, nosso personagem central, andando perdido pelas ruas, a procura de um emprego, ou trabalho, como quiserem, viu, olhos cheios de esperanças em dias melhores, piores não podiam ser, um anúncio de concurso público, com a chancela da prefeitura municipal. De olhos atentos passarinhou-os por todo o edital. A única chance de se dar bem na empreitada, como não tinha formação profissional, era analfabeto funcional, roceiro não era profissão, endireitou as forças para estudar na intenção de ser auxiliar de serviços gerais.
Comprou todas as apostilas numa banca de jornal. Como os recursos monetários, exíguos, foram sumindo, desaparecendo, acabou por se hospedar num banco da praça mesmo, um de madeira, sem cupins ou carunchos, com o formato exato de uma cama boa, só que mais dura que um pedaço de rapadura o qual lhe quebrou dois dentes da frente, os quais ainda não pôde substituir até o momento presente. Lógico, por falta de grana mesmo.
O tinhoso Zé, resiliente ao extremo, acabou aprendendo todas as matérias que iriam ser objeto das provas que se mostraram até que fáceis demais.
Ele foi aprovado para o cargo pretendido. A espera durou menos de dois meses. Enfim foram convocados todos os aprovados, naquele concurso mal afamado, do qual diziam inverdades com sabor de realidade, que os nomeados já eram cartas marcadas, previamente indicados por vereadores apoiadores do prefeito municipal.
No dia da posse Zé mal dormiu direito. O banco duro da praça rangia muito. Dúzia e meia de vizinhos passaram a noite azucrinando o sono do pobre infeliz Zé. Eram viciados em crack. Não craques de bola.
Com a melhor fatiota de que dispunha lá se foi o feliz aprovado no concurso, não precisa repetir que era o Zé, à sala onde deveria trabalhar. Vassouras, escovões, baldes imensos, um uniforme amarelo e verde, o esperavam sem sorrir. O novo trabalhador da municipalidade seria uma margarida homem, já que as valorosas fêmeas desdenhavam do tal serviço, de vital importância à limpeza da cidade. Cansada de ser usada como latrina do mundo. “Lugar de lixo é no lixo”, assim diziam cartazes esparramados por todas as ruas. E quem disse que os cidadãos respeitavam?
Passou um mês. Zé Gari, ou Zé Margarida, como ficou conhecido, era exemplo exemplar de trabalhador modelo. Acordava antes do cantar das vassouras. Ou seria o cantar do galo? Na praça onde ainda morava, no mesmo banco, da mesma praça, não havia galo nem galinha para cantar a história.
Três meses se foram. A paciência do Zé Gari foi-se indo, indo, devagarzinho, até desaparecer na braquiária. Nada de salário perceber. Sorte não ter ainda contas a pagar. A luz da praça era da competência da prefeitura, sua patroa e devedora. A água era tirada dali mesmo, da fonte iluminada, que de repente ficou um breu.
Um dia, de manhã, bem cedinho, quando se preparava para lavar o rosto na fonte às escuras, no fundo do tanque existia uma pocinha, restos de água da chuva que caíra trasanteontem, graças a Deus, apareceram dois fiscais da mesma entidade da qual era empregado, que, mal encaradamente lhe deram ordem de despejo.
Zé, que já era um sem teto, sem afeto, sem seu doce predileto, mais uma vez se viu no olho da amargura pura.
Noutro dia, sem receber um tiquinho do que lhe devia a prefeitura, pediu carona no mesmo caminhão leiteiro, do amigo Elói, que o levou adonte não deveria ter partido, a sua roça que nunca lhe negou abrigo, mesmo mercê das chuvas não deram o ar da graça na sua desgraça toda.