Pra quem vou deixar o meu legado? E qual seria ele?

Ontem me encaminharam um lindo e-mail, vindo de um colega dos idos anos de quando nos formamos em medicina, na capital do estado, agora um tanto desvirginada da sua pureza, a Belo Horizonte daqueles anos longínquos, me perdoem os que ainda a amam, não exibia nas suas praças, em seu parque municipal, meu caminho de todos os dias que me conduzia à faculdade, até hoje fincada na Avenida Alfredo Balena, toda a degradação que se vê agora. Muitos pedintes, viciados, não na vida, na natureza como eu sou, na atividade física que me encanta, na cultura da qual sou fã.

Ainda me lembro do prédio alto onde morava. Era pertinho de um viaduto. Tanto ele, quanto a ponte suspensa, ainda estão no mesmo lugar. Só que sem a pureza de antão. A Rua Tamoios, onde tomava lanche, fazia curso de inglês na Cultura Inglesa, e Alemão em outro local, tive de interromper o curso de Alemão por estar interferindo no idioma de maior uso em todo mundo, quem não o entende ou fala fica fora do contexto, à margem da sociedade de consumo, não consegue um bom trabalho, nem mesmo um ruim, aquela rua, de nome de uma tribo de índio está solenemente avacalhada. Muitos agora a fazem de latrina, nome que abomino, pois sobre ela despejam os excrementos do mundo, com uma fedentina que sói ela fede.

Voltando ao e-mail a mim encaminhado, por aquele colega misterioso, com quem apenas me reencontrei uma vez só, mesmo assim por insistência minha, a tal mensagem internética era assim, ou quase.

Testamento de mendigo (Urbano Reis)

“Agora, ao fim da vida, a quem vou deixar todos os meus bens? Minhas calças remendadas, meu céu de estrelas, minha camisa rasgada, as águas dos rios, dos lagos, os meus bandos de pardais ao entardecer, essas folhas de jornais que uso para me cobrir, todo o ouro que o sol me dá ao nascer, meu chapéu todo amassado onde escuto o tilintar das moedas ali jogadas por pessoas de bom coração, o grande estoque dos “Deus lhe pague” que ouço todos os dias, as minhas sandálias furadas que pisaram mil caminhos, minhas saudades profundas dos sonhos que já sonhei, esse pedaço de trapo que no lixo encontrei o qual transformei em lenço para enxugar as lágrimas que já chorei, os bancos do meu jardim, de onde tantas e tantas vezes me enxotaram por intolerância dos homens tidos de bem”. Não são todas as frases de Urbano que compilei. O fato é que ele termina assim: “vou deixar todos os meus pertences a outro mendigo qualquer. A intenção é que ele se sinta tão feliz como eu fui”. Se houveram acréscimos de mim, não me tomem por mal, simplesmente os aceitem, como se partissem de dentro do meu coração, que não é o de um mendigo, graças ao bom Deus, mas tentaria ser feliz, como ele se diz.

E quanto ao meu testamento, não o que trata de bens materiais, pois estes já não mais são meus, e sim da minha família, a qual amo tanto, embora por vezes mal compreendido.

A casa onde moro não foi feita por mim, e sim pela grande mulher que vive ao meu lado. O sítio que tenho, aquele pedacinho de chão, que idolatro, as vacas que já foram minhas, hoje as passei adiante, talvez seja o bem mais precioso, dos que penso ter, nada mais tenho que a vida saudável que busco sempre. A outra casa, enorme, que daqui se deixa ver, uma partinha dela, somente, essa sim, foi feita pelo suor do meu trabalho como médico, naqueles bons tempos quando a medicina ainda era tida como rentável, hoje fica quase impossível enricar apenas como esculápio. O médico de agora tem de rebolar, se defender das acusações, a maior parte levianas que nos lançam às costas, pois pensam, os pacientes oriundos do sistema único de saúde, principalmente, que somos nós os grandes responsáveis por suas mazelas e frustrações, enquanto nós apenas respondemos por uma ínfima parte delas.

Duas casas modestas, recém-reformadas, me foram deixadas por meu pai. Elas reforçam o orçamento dos meus ganhos cada vez mais minguados, pois a clínica privada mais e mais encolhe. A casa de Camargos, lugar lindo onde, na maioria das vezes vou solitário, em companhia do meu computador andejo, foi edificada num terreno que foi do meu saudoso pai, pela minha pequena grande mulher. Duas salas ainda restam, dentro dos meus possuídos, no edifício que tem o nome do meu avô materno, o dinâmico velhinho que andava sempre pelas próprias pernas, herança que ele me deixou no testamento, ao morrer, de velho. A casa da Rua Costa Pereira, de número 152, essa, onde fui criado, onde agora mora minha única irmã, pertence a um passado do qual não desejo me livrar, embora digam que o passado deve ficar sepultado, mas não consigo. Tenho uma caminhoneta prateada, da mesma cor do céu de outono, no debrum da tarde, noite feita. Ela foi comprada através de um consórcio, pago por eu e minha esposa. Se outros bens materiais existem, eles não pertencem a mim, como nem eu mesmo me pertenço. Penso assim.

Mas, o que de fato, em verdade, e para quem, desejo deixar como testamento? As coisas materiais, já enumeradas acima, partícipes da declaração do imposto de renda, a mim não importam. Pois, mercê da idade, não gostaria de dizer provecta, tudo que construí, adquiri, a custa do próprio esforço, hoje o trabalho o tenho não como fardo pesado, e sim distração, os valores materiais, o dinheiro, só considero o que percebo sendo o suficiente para não faltar nada em casa, viver com conforto e dignidade pois meus filhos não dependem mais de mim.

A quem deixar meus livros publicados? A uma biblioteca de escola pública, as particulares podem comprá-los de mim, ou numa livraria qualquer. Minhas roupas, são tantas que entulham os armários, mal cabendo dentro deles, as farei de legado a um asilo qualquer. Os dois cães que moram na casa de Camargos, se sobreviverem a mim, deixem-nos onde estão. O Pirunguinha e a Valquíria talvez constituam família, que suas crias sejam mais felizes do que eu fui. Meus pares de tênis, são tantos, que até perdi a conta de quantos são, os melhores, quando eu não mais estiver aqui, deixem-nos, como herança, a quem aprecia correr, como eu. Meus devaneios, minha profunda inspiração, que me assaltam de roldão, se algum interessado por eles ficar, tomara algum dos meus netos, hoje tenho apenas um, por favor, imploro, não deixem a inspiração morrer dentro do peito, deixem-na transbordar, como as águas da cachoeira depois de uma chuvadonha que despenca da serra, sem vontade de parar. O meu prazer pelas corridas de longa distância, as minhas pernas fortes, a minha panturrilha dura como pedra, o meu cérebro hiperativo, os meus pensamentos errantes, o meu prazer em sempre estar atualizado, dentro da Urologia, sempre mutante, tomara algum herdeiro tome a si o gosto pela medicina, já que nenhum dos meus filhos quis me seguir. O meu costume de levantar antes da madrugada, caminhando sempre com a cidade acordando, como hoje se fez presente, esse legado não sei se alguém vai querer ficar com ele. Dormir mais do que a cama nunca fez parte das minhas predileções. Sou inquieto demais para ficar na cama mais do que o corpo pede.

Creio me ter estendido demais nos meus sofismas. Ou seriam lucubrações?

Finalmente, por fim, a quem deixar meu legado? As letras que tanto aprecio?  A cultura que sempre procuro?  A eterna juventude a qual vou atrás e não a encontro? A lealdade, a verdade, a ética, a decência, o prazer de viver, de ser feliz, apesar das dificuldades que sempre encontro pelo caminho?

A quem quiser, ou puder, carregar todo o fardo pesado da esperança morta…

 

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