Apenas eu e ela

Hoje acordei com um sabor de outono no ar. O sol resplandecia. Nenhuminha nuvem no alto. O azul perpetuava-se azul. De um azul brilhante, o amarelo do sol incomodava-nos a menina dos olhos que, caso ficasse desprotegida, pobre daquela menina! Estaria indefesa ao sabor do lobo mau, na pele do sol intenso, da claridade excessiva.

O outono começou triunfante. Uma sucessão de chuvas fortes, provocando enchentes, desabrigos, parece que foi deixada pra trás. Não sei o que pensam os estóicos homens da roça. Muitos plantaram a safrinha, confiando nas águas de março, na enchente das goiabas, não foi um ano bom para fazer goiabada. Elas, aquelas frutas que caem ao solo precocemente, quando não seguras à ponta dos galhos, não nasceram sadias. A maioria foi ocupada por moradores indesejáveis, que não pagam aluguel, e simplesmente se alimentam do âmago das goiabas, provocando aqueles pontos escuros na casca das frutas, sejam elas vermelhas ou brancas, pra mim, ou para os bichos das goiabas, tanto faz. Neste começo de outono, temperaturas amenas, hoje, quando desci a rua em direção a onde estou, fazia perto de quatorze graus Celsius. A seguir, quando as horas avançam a temperatura incrementa-se. Creio sobe ao derredor dos mais de vinte e cinco graus, ou mais. Tomara o homem do campo não se frustre ao desencanto, e a safrinha de milho recém-inserida a terra produza bons frutos, o milho novo dê grãos robustos, e os pés se agigantem tanto quase a atingirem os céus.

Por falar em céu, em firmamento, eles são melhores vistos quando a luz do sol se torna amena. Ao final da tarde, ao cair da noite. Principalmente se a noite for recheada de estrelas brilhantes, confundidas a enormes pirilampos que deixaram simplesmente de piscar, por não mais estarem apaixonados, como um dia estive por uma menina moça que, uma vez crescidinha deixou os ares de menina para outra menina que dela nasceu. Num sexo fortuito, quando não se protegeu.

Hoje meu sono foi frugal. Foi curto, dormi cedo demais. O final de março não tem sido de muito trabalho para a população em geral. Um cheiro de crise paira no ar. Lojas não vendem como desejavam, autônomos, como eu, médicos, engenheiros, outros quaisqueres, se imersos apenas na renda que obtém do seu trabalho privado devem estar passando por tribulações financeiras, uma cascata que escorre de cima abaixo, na ciranda cruel por que países passam, frente a desacertos da questão dinheiro. O que fazer, apenas esperar por dias melhores, que por certo virão.

Antes das seis já estava andando pelo passeio. Sempre pelo lado direito da mão direita, em sentido a onde estou, a escrever, depois ser transformado no médico urologista que ainda não deixei de ser.

Poucas pessoas já estavam acordadas. Pelo menos as que se aventuraram na rua, tomara não seja mais um dia de amargura, de pouco trabalho para os que precisam dele para sobreviver. Passava por um ou outro, gatos pingados, a maior parte desconhecidos pela precocidade da hora. Em dias normais costumo descer a rua um cadinho mais tarde.

Já quase no ponto onde cheguei, aqui permaneço até antes das nove e meia, depois sigo a um outro ponto, diametralmente oposto de onde estou, um ambulatório médico de nome pomposo: AME, onde o urologista mostra a caneta, sem poder resolver quase nada a não ser o que a caneta dita, exemplifico: quando a mim chega uma fimose, com indicação cirúrgica, não a posso operar, pois os pacientes advindos dos SUS ali só encontram o médico com obrigação de consultar, diagnosticar, quando os exames pedidos são feitos via sistema único de saúde, os mais complexos demoram mais que a eternidade, e quando o paciente retorna muitas vezes a doença já o consumiu por inteiro, mal sobrando pele sobre pele, ou osso, como queiram. A próstata crescida já entupiu o canal da urina, a pedra grande já lesou por completo o rim, a fimose já se tornou peça de museu, pois a criança já se tornou um velho ranzinza, como eu me tornei, descrente das trovoadas que a vida malvada me fez passar, e foram muitas, e finalizo escrevendo: a saúde pública está no CTI de um hospital capenga, mal aparelhado, sem receber verbas do poder público desde quando Cabral aqui lançou âncoras, creio que depois se arrependeu e não pôde voltar atrás, infelizmente.

Deixando o desabafo esquecido na gaveta da mesa ampla onde escrevo, meu computador pede paz, volto atrás, retrocedo no que queria dizer, antes da minha chegada ao consultório, hoje de agenda vazia, a exemplo dos dias que antecedem o melancólico final de mês.

Por ser ainda cedo, antes das seis e meia, dei uma passadinha pela igreja matriz, naquela hora temprana de portas abertas, como os braços do Deus Pai sempre esteve a nós. Sobremodo aos que Nele acreditam, mesmo não sendo fregueses contumazes a assistirem a missa, hábito que não cultivo desde quando criança, levado pelos meus pais ou avós.

Naquela hora a igreja principal estava vazia. Apenas eu, ela, e suas imagens de santos.

Ao entrar me persignei. Fiz uma breve oração, mal me pus de joelhos. Não por ser desrespeitoso aos Deus no qual acredito, assim como creio nos homens de bem. Que ainda existem no entorno do mundo que gira, ao sabor das marés e tempestades, dos sóis e da claridade excessiva, exemplo que se mostra agora, sete horas e um quarto da manhã.

Não passei pelo interior da igreja matriz por puro acaso ou descaso. Singelamente o fiz. Era cedo ainda, tinha tempo de sobra para ultrapassar mais um dia, a semana está pela metade, o mês quase finda.

Éramos apenas eu e ela, seus santos, suas imagens de santos, um sabor de silêncio, uma coisa indefinivelmente saborosa, como o hálito de outono que tem começo, mas logo tem fim.

 

 

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