Como tem chovido nos últimos tempos.
Chove a destelhar telhados. As enchentes têm colocados incontáveis pessoas ao desabrigo.
A terra molhada agradece a chuva que tem caído. O homem do campo só tem a agradecer.
Embora quando chove a torneiras sem controle percalços existem.
O trator não pode arar a terra. As estradas enlameadas não permitem o trânsito por aquelas bandas.
E quem mora na roça, na solidão daquele lugar ermo, não pode dar um pulinho à cidade, pois falta condução.
Chuva em excesso pode se tornar inconveniente. Mas quando falta, a falta que a gente sente dela pode ser maior ainda.
Tudo tem de ser com moderação. Amor em excesso. Quando do outro lado não tem contrapartida. Desamor nos faz desabar de dor. Assim como a saudade a gente sente quando a ausência dói. Uma dor sentida e ressentida. Como quando minha pequena jornalista pegava o busão na rodoviária rumo ao Rio de Janeiro. E a gente contava nos dedos até que chegasse fevereiro. Pra revê-la de novo por inteiro.
Naquela manhã, durante a noite inteirinha, choveu na rocinha do meu amigo Zé Pitimba.
Não fui eu quem o epitetou assim. Dizem, nas cercanias, que o tal Zé vivia devendo a toda a freguesia. Se comprava não pagava. Fiado não lhe vendiam.
Um dia, que não se vai tão longe, numa prosa na mesa de um bar. Na hora de pagar a conta Zé chegou e disse de boca cheia com bafo de canjibrina: “pode deixar que eu pago. Se não pagar não deixem fiado. Juro que pago até na próxima semana santa. Se não vou empenhar minha sogra. Ele já esta bem veinha. Sua alma vai pagar com certeza. Pois no céu não deixam ninguém entrar quando se deve aqui embaixo”.
Foi uma enchente de risadas. Pois bem sabiam da bazófia do amigo Zé.
Se bem que ele era bom de bico. Inventava causos que até assombração eriçava o lençol.
Era um sujeito de não lhe botar defeito. Se bem que qualidades ele não tinha. Nenhuminha mesmo.
Mas o que lhe sobrava não era dinheiro. Eram ideias mirabolantes.
Uma vez, se não me falha o entendimento, seu carro furou o pneu. Ainda estava bem distante do seu destino. O que o Zé fez? Simplesmente pediu carona. Dizendo-se ser motorista de caminhão leiteiro. E que deveria estar no lacticínio ainda na tarde de hoje. Aquele carro que passava se condoeu do coitado. Levou-o aonde ele queria. E ainda por cima deu-lhe uma nota das grandes como consolo. Por ter agarrado na estrada depois de atolar no barro.
Zé era de verdade uma enchente de ideias. Umas melhores que as outras, se bem digo.
Uma vez, já era tarde, noite alta, quando voltava trocando as pernas de tão embriagado. Como era de seu costume. Já na porta da igreja veio o padre. O sacristão se fazia acompanhar de uma beata. Não é que puseram o Zé Pitimba pra dentro da igreja. Introduziram-no confessionário. E ali dentro o Zé prometeu, de mãos cruzadas no peito magro, que nunca mais iria beber pinga. E não é que ele cumpriu a promessa? Passou a tomar apenas uísque batizado. Na conta de quem mesmo? Do crédulo padre que nunca mais usou batina.
As suas ideias continuavam a frutificar como jabuticaba na jabuticabeira à mercê das chuvas de final de ano. Zé não perdia a viagem, mas não pagava o bilhete.
Um dia, juro não ser mais uma invencionice minha. Encontrei o Zé numa esquina da cidade. Chovia a encher galões de cem litros. Zé estava ensopado até os ossos. De nada adiantou fingir que não o vi. Foi tentando atravessar a rua e escutei um gritinho meio fanho: “doutor, me empresta seu guarda chuva. Por favor, lhe entrego no máximo amanhã de tarde”.
Bem o sabia que Zé não iria me devolver o pai dos esquecidos. Deixei meu tapa chuva nas mãos dele. E Zé me agradeceu a oferenda.
Não carece dizer que nunca mais vi meu guarda chuva. Ainda bem que ela parou. Mas o Zé não parou de inventar cousas e loisas. Ele não toma jeito.
A chuva parece que vai serenar. O céu promete azular.
Mas o Zé Pitimba vai continuar a ser uma enchente de ideias. Como eu tenho as minhas.