Dando tempo aos contratempos

O sono foi enxotado por pensamentos e idéias mirabolantes.

Fora o secume do ar que nos entope as narinas.

Mais uma noite mal dormida. Cadê o sono? Sonhos são desfeitos nesse setembro seco ainda em sua metade.

Como disse dantes tenho medo da noite. A escuridão me incomoda. Prefiro o clarume das madrugadas a negritude das noites.

Cadê a chuva? Tomara ela caia logo. A poeira da estrada. A sequidão das pastarias. São indícios seguros da primavera que se avizinha.

A chuva não tarda a despencar. Que ela venha mansinha como a vozinha de nossa avozinha. Que na hora das refeições nos chamava à mesa. E se não nos apressássemos ela dizia mansamente: “venham meus queridos netinhos. A comida está na mesa. Se não vierem logo ela esfria”.

Aqui chego sempre antes das seis da manhã. Não espero o porteiro chegar.

Subo uma ruazinha de pouco declive. Ruas ainda desertas fora algum madrugão como eu.

Nem sempre encontro a porta aberta do prédio onde mora minha oficina de trabalho. Meu consultório me recebe com a cordialidade costumeira. Abro a porta sem maiores atropelos. Em primeiro lugar tomo meu cafezinho expresso. A seguir distribuo ração aos meus peixinhos aquarianos. Eles três parecem me conhecer. Mas não me dizem bom dia.

Dou tempo ao tempo antes de ligar meu computador. Aqui tenho três. Um preto onde escrevo romances. Outro de uso da minha secretária. E o terceiro esse onde escrevo crônicas e atendo pacientes.

Tenho tentado dar tempo aos contratempos. Mas nem sempre isso acontece.

Ontem mesmo a porta do meu prédio enguiçou. Era ainda bem cedo. Antes das seis, se tanto. Foi preciso paciência para que o pontual porteiro aqui chegasse. Mais um contratempo que sucedeu. Dos tantos que tive de enfrentar no decorrer dos dias.

Já hoje, nessa quase madrugada, céu azul de fazer cegar os olhos, ao tomar o elevador ele empacou no segundo andar.  Dentro dele fiquei preso por alguns segundos. Acostumado a toda sorte de atropelos tive de esperar. Afinal minha querida mãezinha me esperou por quase nove meses. Esse contratempo em absoluto não me inquietou. Dei mais uma vez tempo ao tempo. A espera da chuva que um dia vem.

Já são quase seis horas da manhã. Dou tempo ao tempo antes que as oito horas cheguem. Espero que o paciente agendado para as oito horas chegue pontualmente. E que mais um contratempo não me impeça de terminar esse texto como aconteceu de vez passada. Quando faltou luz aqui no prédio e meu sofrido computador foi desligado.  Foi um contratempo tentar descobrir onde estava o tal arquivo que felizmente foi salvo.

Não estamos livres de contratempos. O tempo hoje está ventoso. Céu claro e feericamente iluminado. Mas nada impede que o tempo mude. Pra chuva espero pacienciosamente.

Nestes meus mais de setenta. Quatro a mais na presente data. Tenho dado tempo ao tempo para ficar mais velho ainda. Se bem que velho não me acho. Idoso sim, soa melhor pra mim. Tento livrar-me dos contratempos. Costumo não me queixar de momentos ruins. Pois os melhores vêm a seguir.

Agora mesmo dou-me um tempo. Antes que mais horas cheguem. E eu me perca nos contratempos da vida. Vida linda que se mostra lá fora. E aqui dentro também.

Tenho dado tempo ao tempo. À mercê dos contratempos que a vida me põe frente a frente.

Amanhã será outro dia. Entrarei pela mesma porta desse prédio. Se não a encontrar aberta não vou me irritar por mais esse contratempo. Darei tempo ao tempo.

Assim tenho feito. Nesses meus muitos anos de vida dando tempo ao tempo. Na tentativa de encompridar minha vida até quanto tempo mais. Ainda bem que não sei. E vou tentando me livrar dos contratempos nesses tempos difíceis por que estamos passando.

 

 

 

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