A gente nunca esquece

Embora a memória possa nos deixar órfãos a partir de certa idade.

Começando pelo começo bem me lembro dos meus primeiros anos.

Antes dos cinco poucas recordações me assediavam. Era bem novinho ainda. Quase não tinha passado. Minhas recordações se estendiam apenas quando sugava o leite das tetas de minha mãezinha querida. A partir de então meus pais se mudaram para essa cidade.  Não foi aqui que meus olhinhos inquiridores pela primeira vez se abriram para ver a luz do mundo.

Foi noutra cidade aqui bem próxima. Boa Esperança me recebeu esperançosa que eu me tornasse um bom menino. Embora fizesse as minhas traquinagens meus vizinhos de rua não tinham do que se queixar de mim. Era um moleque como todos outros. Empinava pipa. Rolava rolimã. Disputava animadas peladas num campinho de várzea meio cambeta. Cujas traves desabavam ao menor assopro do vento.

Aos sete anos matricularam-me num colégio de bom pedigree. Até hoje dizem, com muita propriedade, que a gente pode sair do Gammon. Mas ele não sai de dentro da gente.

Cresci alguns centímetros apenas. Não espichei tanto quanto minhas idéias.

Uma vez concluído o primeiro degrau continuei subindo.  Gostaria de alcançar a lua, mas ela se mostrava inatingível.

Aos dezoito, pensando chegar a maior idade. Continuei meus estudos. Não tinha pelos números em alto conceito. Amava as letras. Idolatrava as frases bem feitas. Tinha verdadeira paixão pelos parágrafos bem escritos.

Uma vez concluso o segundo grau não sabia pra onde continuar. Uma indecisão tomava conta de mim.

Nunca me esqueci daqueles bons anos quando me mudei para Belo Horizonte.  Deixei o Gammon entregue as saudades.

Não me esqueço do terceiro cientifico.  Essa etapa foi vencida noutra instituição de ensino de bom conceito. Era um colégio bem próximo da reitoria da Universidade Federal das Minas Gerais.

Não tive sucesso na primeira tentativa de acesso à faculdade de medicina.

Ainda bem me lembro das aulas de um cursinho preparatório ao vestibular. Não sei se ainda ele existe. Talvez tenha se mudado como eu me mudei.

Nunca me esqueci da felicidade que tomou conta de mim quando vi meu nome escrito entre os aprovados. Foi um dia de muito regozijo.

Não me olvido ainda dos primeiros anos do curso médico. Foram dois anos inteiros noutra escola. Ainda sem conhecer as outras matérias bem próximas do meu futuro pelas trilhas da medicina.

Não me esqueço nunca dos cinco anos de estudos com muito afinco. Afinal são passados cinquenta longos anos que nossa colação de grau se deu.

Não me esqueço daquelas noites mal dormidas quando me desdobrava em plantões em diversos hospitais na capital mineira. Num deles foi afanado meu fusquinha todo incrementado. Quando ele foi encontrado. Todo depenado. Foi uma decepção total.

A partir de antão minhas lembranças avivam mais. Passei um ano inteiro na cidade mais bela da Europa. Madrid me recebeu sem ver as touradas. Não me esqueço daqueles bons meses. Percorri, mochila ás costas. Metade do continente europeu. Ásia e parte da África, quase sem gastar um tostão.

Não me esqueço de quando passei por Londres. No comecinho do inverno. Um frio intenso me intimava a pensar no Brasil. Nas suas praias paradisíacas. Nas suas mulheres maravilhosas. Tinha na algibeira apenas umazinhas vinte libras. Que mal davam para comer. Foi num domingo nevoento, cinzento e gelado, que esse fato aconteceu. Numa praça central da capital do Reino Unido que me deparei com uma inda mulher. Era a Picadilly Circus, se bem me lembro. Ela se cobria com um lindo casado de vison. Por baixo desconheço o que ela usava. Ávido por um encontro amoroso a ela perguntei num inglês escorreito: “are you waiting for me”? Bem me lenbro da sua reposta gentil: “no. Its is for business”. E eu, com apenas vinte libras para passar alguns dias retruquei sem pressa: “how much”? E ela, descrente de passar alguns minutos na cama comigo respondeu: “ twenty pounds”. Nossa prosa não passou disso. Podem acreditar.

A gente nunca se esquece das decepções sofridas. Essa não foi a primeira nem derradeira que me fez pensar em desistir da vida.

Bem me lembro de muitas coisas boas que me aconteceram de ai em diante.

Aqui nessa cidade estou quase uma vida inteira. Não me esqueço de quase nada. Até quando?

Espero continuar assim até que minha memória não me atraiçoe. E continue me lembrando de tantas coisas que valem a a pena se lembrar.

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