Há tempos tenho pensando em parar de vez.
Também pudera!
Depois de cinquenta anos de graduado. Uma vida inteira dedicada ao trabalho. De tantas noites insones operando e reoperando pacientes. De me dedicar meio século tratando enfermidades sem pensar nas minhas. Penso haver chegada a hora de um descanso.
Mas, repensando a vida que tenho levado. Percorrendo leitos em distintos hospitais. Varando noites sem dormir. O que vou fazer no tempo que me resta?
Acordo ao despertar do dia. Não tenho parança em minha vida. Sou deveras irrequieto. Tenho pressa não sei de que. Corro talvez de mim mesmo e não me acho. Ando como noticia das piores. Não me conformo em ficar na cama depois de certas horas.
O que irei fazer, se por ventura de uma desventura, parar por completo. Ficar num banco da praça vendo as horas passarem. O dia se transformar em noite? Passar um dia inteirinho tentando entender o porquê dos porqueres? Ah! Não sei se darei conta de esperar um ano inteiro a ver dezembro chegar. Para ver outro ano começar.
Hoje me satisfaço com tão pouco. Com um sono bem curtinho. Com um despertar madrugão.
E como me sinto bem em chegar aqui bem cedinho. Dar comida aos meus amiguinhos peixinhos aquarianos. Ligar esse computador que recebe a inspiração que me cavouca as entranhas. São tantas que perdi a conta. São crônicas que retratam o cotidiano. Aqui arquivadas até serem compiladas em mais um livro.
Como temos parecença eu e meu amigo Mané. Temos quase a mesma idade. Somos nascidos num mês de dezembro. Diferimos apenas na data.
Mané sempre diz que dispensa o sobre. Não sei até hoje se ele o tem.
Acostumei-me a chamá-lo simplesmente de Mané. Se por acaso de um descaso seu nome primeiro é Manoel nem quero saber.
Sempre nos encontramos a mesma hora do mesmo dia. Nesse mês de abril foi ontem de tarde.
O dia ainda nem abriu os olhos e Mané já estava de pé. Já tomando seu cafezinho requentado na trempe do fogão a lenha. Sorrindo sempre como de costume.
Fomos colega na infância perdida no passar dos anos. Depois seguimos caminhos díspares.
Eu enveredei-me pela medicina. Ele acabou morando na roça onde vive até hoje.
Nem unzinho cabelo branco ele tem na cabeça. Eu coleciono incontáveis cãs.
Manezinho quase não tem rugas. Na minha face elas são incontáveis. Ele dorme como um anjinho. Eu não tenho sono.
Naquela tarde de sábado fui fazer-lhe uma visita. Rápida como um assopro do vento.
Falamos de tudo um cadinho. Dos nossos encontros em meninos. Das nossas namoradinhas em crianças. Daquela professorinha que nos ensinou o baba.
Foi na nossa despedida que toquei no assunto aposentadoria completa.
Eu iria parar de vez pra sempre. Ele iria aposentar a enxada completamente.
Eu não iria acordar tão cedo. Passaria a dormir até o galo cansar de cantar.
Ele não mais iria carpir mato. Iria vender as vacas por qualquer preço por menor que fosse.
Mané não mais acordaria a hora que eu acordo. Ficaria na cama até que o dia se transformasse em noite.
Antes que eu fosse embora. Lá pelas oito da noite. Ouvi do amigo Mané essa confissão que lhes passo agora.
“Olha! Escuta! Presta atenção no que eu digo e deixo escrito. Eu sou igualzinho a você. Não tempos parança. Somos madrugões de nascimento. Se me pedirem para descansar de vez pra sempre respondo sem mal criação. Hoje tenho setenta e cinco. Não sei quantos anos mais viverei. Nos anos que me restam, quando mortinho estarei. Ai sim, no instante que fecharem meus olhos descansarei para sempre. Agora me deixem trabalhar. Tenho forças suficientes para tocar minha rocinha. Acordar a hora que estou acostumado. Permitam-me ser como eu sou. Não lhes peço nada mais. Vou descansar sim. No dia quando eu quiser de verdade”.
É, penso igualzinho ao amigo Mané. De verdade…