O último dia de um médico

Bem sei que não se deve pensar no dia seguinte.

O passado não volta. O presente aí está para vivermos em intensidade máxima.

O futuro tem a incertitude do amanhã.

Mas quem diz que pra mim o passado deve ser esquecido não condiz com a minha verdade.

Pra ele sempre volto. Basta olhar pela janela de onde estou e ele se apresenta naquela rua que daqui se avista nesta ainda madrugada escura.

Meu relógio mostra quase seis. Faltam dois minutinhos para chegar às seis.

Como de rotina essa é minha hora de chegar onde estou. Por vezes chego antes. Tenho pelas madrugadas um chamego especial.

Durmo o suficiente para acordar disposto sempre a mesma hora. Tenho medo da noite. Já disse o mesmo antes num texto anterior.

Ainda me lembro da minha colação de grau. Éramos cento e sessenta jovens médicos.

A efeméride se deu num ginásio lotado da capital das minhas Minas Gerais.

Cinquenta longos anos se foram perdidos nas minhas lembranças.

Ainda estou no exercício mais ameno da medicina. Faço apenas o que aprecio.

Quase não mais vou ao hospital. Espero precisar de cuidados médicos ainda num futuro incerto.

Ontem fui informado do passamento de um colega. Meu amigo de infância.

Era um bom profissional.

Soube da morte dele através de uma rede social. Seu nome era Max. Os sobres não me lembro quais são.

Ele morava na mesma rua. Aquela tantas vezes citada nas minhas crônicas.

Tínhamos quase a mesma idade. Um ano mais vivido era ele.

Apartamo-nos há poucos anos. Eu continuei aqui. Ele noutra cidade.

Desde que ele se mudou nunca mais nos encontramos. Éramos amigos dantes. Agora dele só restam recordações.

Max era um clinico admirável. Desdobrava-se em muitos mesmo sendo apenas um.

Atendia em mais de quatro hospitais. Naquela idade ainda não havia encontrado a mulher ideal. Morava mais nos hospitais que na própria casa. Não tinha parança.

Desconhecia o que seria uma boa noite de sono. Dormia menos do que eu.

Mal chegou aos sessenta. Nas raras noites vazias ele as preenchia nas mesas de bar. De lá saia trôpego. Bebia além do que a prudência recomendava. Seu fígado implorava moderação.

Mas ele continuava sempre na mesma cantilena. Dos hospitais para a casa onde dormia quando podia.

Mas os plantões o intimavam a voltar ao hospital.

Anos se foram. Meses deixaram rastros.

Max continuava vivendo na mesma ladainha. Morando solitário. Comendo precariamente. Sem direito a descanso na sua sofreguidão.

A sua saúde periclitava. Mal tinha tempo para cuidar de si mesmo. Entregue às azáfamas da profissão.

Ontem soube da sua despedida dessa vida que não desejo pra ninguém.

Max morreu num leito do mesmo hospital onde sempre trabalhou.

Soube do seu passamento na manhã de ontem.

O último dia daquele colega foi onde sempre demos o melhor da gente.

Pra mim não existe lugar melhor para nos despedirmos de tudo aquilo que sempre desejamos. Tentar atenuar a dor dos outros indiferentes ao próprio sofrimento.

Meu colega Max se foi. Prematuramente, creio eu.

 

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