A partir de hoje permito-me voos mais altos

Nos dias de hoje moram comigo no apartamento três avezinhas que não sabem viver fora de um confinamento.

Um é cantor. O canarinho belga, por mim nomeado Vitinho, mora numa gaiola suspensa do lado de dentro da janela da cozinha. Quando deixo minha morada ele ainda dorme. Não sei se ele sonha viver em liberdade. Muito menos sei se canarinhos sonham tanto como eu. Mas eu não me atrevo a soltá-lo na natureza pois, quando o comprei de um criador de canarinhos cantores ele me disse o que dar ao Vitinho em sua alimentação. “Apenas alpiste e painço e uma folha verde de couve e um ovo cozido frio uma vez apenas na semana”.

Tenho seguido à risca suas orientações.

Na segunda gaiola, bem maior, moram felizes os amiguinhos Quico, o periquito, e Dinho a calopsita. Eles não se desgrudam tanto no poleiro onde passam o dia ou se alimentando de ração própria, conforme me foi recomendada, e uma fruta como mamão ou símile, essa dieta por capricho unicamente meu. Não sei se capricho ou melhor dizendo indicação minha.

Eles são a prova viva que uma boa amizade resiste ao cativeiro em que jaula for.

Tanto Quico como o seu amigo, ou talvez seja amiga, Dinho ou Dinha, pois se não aprendi qual seja o sexo dos anjos, ou se eles os têm, seria demais exigir de mim saber se calopsitas são do sexo masculino ou seu oposto. Já que nos dias de agora homens e mulheres cada vez mais se equiparam. Só nos falta vestir saias ou anáguas. Já que as combinações já são feitas ao despertar de um novo dia, conforme ordens expressas da patroa: “ você lava a louca e eu vou ao trabalho. E, se não fizer direito tudo aquilo que eu deixei escrito me mudo para a casa da mamãe e trago ela para morar com a gente”.

Mas meus queridos amiguinhos empenados são felizes como estão. E não me atreveria a deixá-los livres como devem ser os passarinhos. Pois imagino – caso fosse me facultado libertar os três de suas gaiolas eles não voariam pra longe do meu sustento. Eles não saberiam voar como um dia vi dois filhotinhos de beija flores uma vez dotados de asinhas já preparadas ensinados que foram a deixarem o ninho materno a enfrentarem as agruras de um cotidiano adverso.

E eu? No meu caso concreto. Aprendi a voar por certo? Ou apenas engatinho como um bebezinho trôpego trocando passinhos inseguros pelo chão da sala.

O que tenho feito nos meus quase setenta anos de existência creio que bastante produtiva até então?

A principio aprendi a andar por minha conta e risco. Se corri riscos foram calculados. As quedas não foram pensadas mas eu me levantei.

Primeiro sob os olhares seguros e zelosos dos meus pais.

A seguir, quando não mais os tive ao meu lado já caminhava sozinho.

E como trabalhei, e nos tempos de hoje reduzi as minhas horas de trabalho.

Por mais de trintanos não sabia a cor e nem o sabor de uma boa noite de sono. Talvez venha daí o meu receio da escuridão das noites. E prezo tanto o clarume dos dias e o despertar do sol.

Eram noites em que tinha de voltar ao hospital pois me chamavam ao telefone por motivos dispares: “Doutor! Venha depressa que Seu Joaquim está vomitando muito. Ele se mostra febril. Posso dar no soro um frasco inteiro de dolantina para atenuar-lhe a dor? A sonda do 504 entupiu de novo. O que fazer”?

E eu ligava o meu chevetinho azul piscina e ele não dava partida. Tinha de chamar um taxi a meia noite e ele não vinha e eu ficava agoniado e tinha de ir a pé ao hospital para sanar o defeito. Que não era meu.

Talvez tenha vindo desses tempos bicudos a minha ojeriza aos carros e meu amor pelas pernas fortes que as tenho aqui embaixo.

E o tanto que nestes quase cinquenta anos de formado dei de mim o meu melhor. E se por acaso alguém pensar que não me prove o revés.

Aposentei-me do serviço público mas confesso sentir saudades daquelas carinhas agradecidas como a da dona Maria José que me trouxe um frango caipira vivo e cacarejante atado pelas pernas em um varal de bambu do mato em agradecimento a uma simples receita dada de coração a ela naquele dia chuvoso quando nos molhamos por inteiro e ainda rimos de tamanha desdita.

Pena que por vezes não eram pessoas afáveis com ela. E não reconheceram a nossa luta de esculápios militantes em pronto socorros dobrando plantões sem ver a cor do pago ao final do mês.

Foram incontáveis anos em luta constante e por vezes desgastante que enfim penso estar mais sossegado e escrever a cada madrugada o que me consome por inteiro.

A partir da presente data, daqui pra frente, ainda não penso em abandonar de vez a minha lida médica. Tornar-me-ei apenas um retratista do cotidiano? Um romancista que não mais pensa em romancear em vida? Ou apenas um sonhador que desperta do seu leito e não desperta para a realidade brasileira mais e mais triste para os que nada tem ou se postam sem tetos estendendo as mãos a cata de migalhas que sobram ou soçobram dos bolsos dos abastados que têm castelos quase pirâmides de tão valiosos em colinas com vistas ao mar em Mônaco ou nos alpes suíços somente para serem vistos no Instagram e demais redes sociais que a mim causa asco tão somente.

A partir de hoje vou voar sim. Pra onde? Podem perguntar.

Pra lá ou pra cá. Depende.

Se soltar meu canarinho Vitinho ele não saberia pra onde ir.

Se deixar livres e soltos tanto a calopsita Dinho ou o periquito Quinho eles também sentir-se-ão perdidos.

Mas eu, no meu canto, irei cair em prantos caso me impeçam de soltar minhas asas, melhor dizer palavras. E não me deixarem publicar livros. Eu morrerei não numa gaiola qualquer. E sim aqui, no meu consultório, onde a cada dia amanheço a escrever tanto.

 

 

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