No silêncio da madrugada

Nem bem o dia abriu os olhos e Antenor já se pôs de pé.

Estava escuro. Fez calor durante a noite. Curta, como sempre. Choveu um bom bocado.

Lá pelas cinco e meia o céu se misturava entre um cinza desbotado e um azul esmaecido.

Antenor, sujeito trabalhador, acordava sempre a mesma hora. Poucas pessoas se viam nas ruas. Era uma segunda-feira, começo de fevereiro.

Devido à crise por que passava o país Antenor, sem profissão definida, engrossava a lista dos desempregados. Sempre em busca de uma ocupação.

Acordava cedo. No silêncio das madrugadas. Naquele dia amanheceu com uma disposição enorme. Seria afinal a redenção de sua amargura. Por certo, sonhou ele, encontraria um emprego, depois de amargar quase dois anos a espera de ter enfim sua carteira assinada.

Por sorte Antenor, aos quase quarenta anos, não havia se casado. Vivia solitário numa pensão de quinta categoria. Onde a senhoria sempre o lembrava das mensalidades em atraso. Só não se viu no olho da rua pelo singelo fato de uma vez ter se deitado com aquela senhora obesa, episódio do qual se lembra com sincero asco.

Naquela manhã, de uma segunda-feira, Antenor tomou um cafezinho magro numa padaria perto de sua pensão. Só tinha dinheiro para um pingado. Nem um pãozinho francês podia pagar.

A noite se confundia com a manhã. Estava escuro. Chovia mansamente.

O relógio da igreja principal marcava antes da cinco. Poucas pessoas se atreviam a sair à rua.

Mendigos, drogados, acordavam sonâmbulos pelos passeios de onde exalava um cheiro pútrido de urina.

Antenor ignorou-lhes a presença. Um deles ameaçou o pobre homem com seu hálito etílico. Por sorte acabou tropeçando nas suas próprias pernas. E acabou desequilibrado na calçada onde passou a noite.

Em busca de emprego Antenor tentou, mais uma vez, trabalhar naquela mesma padaria onde de quando em vez tomava seu café. Ali recebeu mais um não.

Ele perdeu a conta de quantos foram. Até então.

Ao fim do dia a chuva serenou. Com o corpo moído pelas andanças mais uma vez Antenor se recolheu à pensão. Desiludido, amargurado, sem esperanças de encontrar trabalho aquele homem passou mais uma vez a noite em claro. Embora fosse ela a mercê da escuridão.

Antes da madrugada se fazer dia mais uma vez Antenor deixou a habitação a procura de emprego. Era uma manhã quente, um calor sufocante o fazia quase perder a respiração.

No silêncio da madrugada Antenor saiu a cata de emprego. Qualquer coisa serviria. O que a ele interessava era ter um trabalho digno, perceber um salário, mesmo que fosse irrisório. O que aquele trabalhador gostaria era em verdade ter a sua carteira assinada. E assim deixar de engordar as estatísticas de mais um desempregado, naquela situação de crise por que o país atravessava.

Ao fim do dia mais um desalento marcou a trajetória do pobre homem. Só recebeu “nãos, volte depois, não temos vagas”.

Mesmo assim Antenor não desanimou. Continuou o seu périplo em busca de emprego, no silêncio das madrugadas.

No terceiro dia, caminhando cedo, antes que as horas se tornassem manhãs, Antenor afinal pensou ter encontrado a materialização dos seus sonhos. Foi aceito ajudante de padeiro naquela mesma padaria costumeira.

Só que o azar o perseguia. Um assalto naquela casa de pães se deu justamente naquela manhã. Antenor, e os demais colegas, foram feitos reféns.

Um dia inteiro se passou. A polícia mantinha o cerco aos bandidos. Antenor foi o que mais sofreu naquele dia maldito. Foi amarrado num quartinho dos fundos. Teve seu braço quebrado. Por sorte foi solto com as pernas doloridas, com o corpo todo alquebrado, tendo sido despedido sem culpa, justamente ele, o mais inocente de todos.

Mais uma vez Antenor se viu ao desabrigo. Persistiu, apesar dos percalços, em busca de trabalho.

Deixava a pensão sempre a mesma hora. No silêncio das madrugadas.

Por fim, quando já não esperava mais nada de sua vidinha insossa, apareceu um senhor, o qual confiou no pobre Antenor. Incumbiu-o de passear seus cães. E ele o fazia com a maior boa vontade, levando os enormes canzarrões a passear pela cidade. Isso no silêncio das madrugadas.

Este trabalho durou pouco tempo. Logo os cães envelheceram. E não mais precisavam caminhar sob a tutela de Antenor.

Mais uma vez Antenor se viu em dificuldades. Mas sempre saía as ruas no silêncio das madrugadas. Esperando dias melhores. Que nunca aconteceram.

Numa manhã, quando chovia a cântaros, o céu escuro prenunciava tempestade, quando o infeliz Antenor deixou a pensão a procura de trabalho, sempre no silêncio das madrugadas, apareceu um carro, em disparada, colheu o infeliz de chofre, e o deixou severamente ferido no asfalto molhado.

Antenor acabou num leito de hospital. Imobilizado para sempre. Foi partida a sua coluna vertebral. Afinal Antenor foi encostado na previdência social. Aposentado para sempre.

Foi no dia de hoje que o encontrei na sua cadeira de rodas, fazendo malabares num semáforo. Antenor sorriu pra mim. Depois que depositei na sua mão estendida uma nota de vinte reais. Era bem cedo ainda. Numa destas madrugadas silenciosas. Onde quase não se vê ninguém andando nas ruas. Fora o pobre Antenor, o qual apelidei de Silêncio das Madrugadas.

 

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