Ignoro-lhes o maior defeito

Toninho Abobrinha e Esquerdinha Modesto eram amigos inseparáveis.

Não se desgrudavam desde que deixaram o berço. Era um grude só. Como quando a cola antiga, chamada de goma arábica, servia para colar pipas que se levantavam ao ar e subiam ao céu como fazem quase os urubus.

Aonde ia um o outro, dois anos mais jovem, seguia o mesmo caminho. Fosse cair numa ribanceira enorme ou ir para um lugar seguro. Toninho, epitetado de Abobrinha, desconhecia-se a razão. Se fora por causa daquele legume saboroso, que serve para encher de arroz e carne moída, levar ao fogo baixo, e, depois de pequena espera levar à boca, faminta ou não, e fazê-la salivar. Após um mastigo leve deixar descer rumo ao estômago, ser ali digerido pelos sucos gástricos, sendo processados rapidamente pelos intestinos. Ou segundo outra opinião, Toninho foi chamado em menino não ladino, de Abobrinha, por sempre dizer coisas e loisas que não prestavam. Nada se tiravam delas. Cheias de senões de português e inconsequências grandotas.

O fato que seu amigo Esquerdinha Modesto, hábil com o trato da bola, com ela nos pés fazia diabruras pelos campinhos de várzeas, era tido como modesto. “Modéstia a parte”, sempre dizia ele. Era sempre o último a sair da sala de aula. Esperava pacienciosamente a professora, ajudava a mesma a levar os cadernos e livros didáticos, era aluno exemplo. Nunca se gabava de fanfarronices. A palavra imodéstia era sua desconhecida.

Os amigos foram por caminhos cruzados. Toninho Abobrinha, que nada tinha de modesto, enricou a olhos perdidos. Também, o que alardeava aos quatro inventos, não era figurinha que constava em qualquer álbum de futebol. Ele se deu bem na vida. Conquanto o modesto Esquerdinha, embora jogador de toques refinados, modesto não apenas no nome derradeiro como nas atitudes cotidianas, logo que atingiu os trintanos foi deixado de lado. Aposentado prematuramente. Apesar de bom de bola e ser boa pessoa.

Qualidade não intrinsecamente ligada ao anedotário nacional verde e amarelo.

Aqui, quem não leva vantagem não leva nada. A não ser contas na cara. E prestações atrasadas a Deus dará.

Toninho Abobrinha, mesmo falando asneiras, que era o melhor, com ou sem chuteiras, escrevia melhor que um tal de Paulo Rodarte, que era orador mais fértil que seu tio o velho Chico, que hoje faz discursos inflamados a favor de um certo presidente barbudo ao lado dos anjos, essa era a nossa controvérsia, embora o amasse muito, meu primeiro revisor, acabou sendo o presidente de uma multinacional. Daí a razão de o seu súbito enricar. Conquanto seu velho amigo, Esquerdinha Modesto, vendia o almoço para pagar a janta. E dormia esfomeado. Sempre com a barrica roncando. Como um gato asmático e alérgico a sua dona.

Quis a senilitude que ambos foram morar na mesma cidade. Depois de atingirem os quase cem anos. Estiveram afastados por anos tantos que não sei quantos foram.

Foi quando os avistei aqui na pracinha ao lado.

Estava de boa. A espera de a noite chegar e conseguir iludir a vigília, pois sempre achei a noite um desperdício de tempo.

Tanto o Toninho Abobrinha quanto seu amigo antigo, o Esquerdinha, pobretão, vivendo das sobras dos endinheirados, em seu barraco dependurado no morro apenas se viam alguns troféus enferrujados, e medalhas antes prateadas, proseavam a línguas soltas. Não sei bem o assunto pertinente a que. Se de futebol, de religião que não tinham, nunca se ajoelharam em nenhum banco duro de madeira carunchada ou não, ou qualquer coisa e loisa de significância importante.

O fato retrato, o que quero deixar aqui escrito, bem ou mal, qualquer opinião aqui grafada sou responsável pelas consequências, é que o exemplo de modéstia que Esquerdinha me passou não faz parte das minhas reminiscências. Nunca fui modesto. Nem no nome ou no sobre. Muito menos nas atitudes. Falo e escrevo o que me der na telha. E olha que meu telhado é ralo. Sou quase calvo. Como meu saudoso pai.

E mais uma vez me perdoem, caso discordarem de mim. Não sejam modestos como o pobre Esquerdinha. Sejam petulantes sim! Como o é o Toninho Abobrinha que nunca vai apodrecer. Pois quem tem dinheiro de sobra, caso morra, quantos herdeiros irão aparecer? No caso do modesto Esquerdinha não pulularão milhares. É só passar a peneira que alguns grãos miúdos por ali passarão. Como eu passarei. Mas em se tratando do imodesto Toninho mil e um bocudos saltarão do túmulo. A espera da dinheirama deixada num banco qualquer.

Modéstia nunca foi o meu fraco. Ela sim é virtude dos fracos e oprimidos. Isso sim.

Querem saber qual o maior defeito dos dois? A modéstia do pobre Esquerdinha. Que não lhe deixou nada a não ser a rua da amargura. Só ela. E nada mais. Além de mim…

Deixe uma resposta