Adoro regionalismos. Expressões locais, fruto da linguagem regional de nosso povo, inculto na maioria das vezes, mas esperto no quesito de negociar naquela feirinha entulhada de barracas onde o espaço é exíguo mas a simpatia abunda. Bem com a fraternidade nos inunda de coisas boas, embora digam que a violência por ali impera, que os assaltos nos tiram a tranquilidade, que não se pode caminhar naquele lindo calçadão, com os olhos debruçados na placidez do mar da praia de Iracema. Fincada na linda Fortaleza, capital do humor, onde os nascidos lá não nascem. E sim logo despontam para o mundo fazendo humor. Basta citar, para não me estender demasiado: Chico Anízio, Adamastor Pitaco, Alex Nogueira, Otília, Skolástica, Paputin, dentre tantos outros que justificam o dito: “na terra da luz todo dia é terra de sorrir”.
Para comer uma lagosta fresquinha não carece de ir longe. Basta um cadinho de atrevimento, botar as pernas para andar, e ir ao mercado do peixe, a mão direita da feirinha da praia de Iracema, escolher os camarões ainda respirando, a bela lagosta implorando para que tenha morte breve, pagar um preço mais do que conveniente, para que a dona do pescado prepare a gosto tais petiscos, de encher a boca de saliva e o estômago fique pra lá de contente.
O calor do Ceará pode incomodar quem vem da Noruega em pleno inverno. Dizem que pior ainda é a quantidade de sol que faz suar os nascidos no vizinho Piauí. Mas, ao olhar o mar na praia do Futuro, com aqueles corpos tostados como o da pobre lagosta grelhada ao ponto, quem se importa de desnudo ficar? Só se for ruim da cabeça e não apreciar lindas morenas, cabelos crespos como as lindas ondas do mar, cinturas finas próprias ao enlace do abraço, nádegas perfeitas para namorar, pernas morenas sem um gramo de celulite, e se as tem que tal deixar pra lá?
Não tive a chance de me banhar na praia do Futuro ou em outra qualquer. As atividades do congresso de urologia foram de tal maneira intensas, que apenas ia ao centro de convenções naquelas vãs refrigeradas, pontualíssimas, motoristas corteses e afáveis, bons de prosa e amáveis ao extremo, da mesma forma que os funcionários do delicioso hotel onde nos acomodamos. Plenárias lotadas de colegas de várias partes do universo urológico, sotaques iguais aos nossos, díspares na maior parte das vezes.
Não cabe aqui, neste texto de hoje cedo, nesta manhã ensolarada de quarta-feira, a um par de olhos do final de agosto, inserir meus leitores nos assuntos abordados neste conclave da minha especialidade. Apenas cito, an passant, as modernidades dos tratamentos que a ciência urológica coloca a nosso dispor, como os robôs de preços ainda exorbitantes, basta dizer que apenas na manutenção se gasta duzentos e cinquenta mil reais ao mês para deixá-los azeitados e capazes tanto de operar um câncer de próstata com maestria de um maestro capaz, sendo a gente, operadores laparoscópicos músicos afinados, bem como retirar um rim enfermo por causa de um tumor enorme, ou fatiá-lo em nacos precisos, quando a nefrectomia é parcial.
Pena que a gente, do interior do meu interior, não consiga usar tais modernidades, mas temos a obrigação de conhecer todos os maravilhosos equipamentos que a moderna parafernália ostenta orgulhosa, ano a ano mais ainda, não sei o que vai ser do bisturi de fio afiado, cada vez mais peça de museu.
Andando, nos intervalos das palestras notáveis, onde convidados internacionais trocavam figurinhas carimbadas com os locais, pelos stands onde eram servidos lanches e cafezinhos ao ponto, com a bolsa do congresso recheada de canetas e brindes agora menos fartos, com minha nova bolsa a tiracolo onde se abrigavam livros meus, prontos a serem vendidos aos interessados, bom dizer que consegui um feito notável para um reles esculápio escritor, vendi todos os dez trazidos nas malas. Quase foi a conta de pagar a passagem de Belo Horizonte a capital do Ceará.
Foram quatro dias e três noites de vida intensamente vivida. Não só nos eventos da especialidade, como visitando a linda Fortaleza, captando suas belezas, desfrutando seus sotaques, curtindo seus humoristas notáveis em exibições graciosas no calçadão, nas barbas daquela feirinha onde se pode comprar artigos regionais, como toalhas de mesa rendadas, castanha legítima fresquinha, petiscos incomparáveis para se bebericar tanto uma perfeita caipirinha bem como um uísque de anos mais que os meus, conto agora com sessenta e sete.
A parte científica do evento da Urologia foi formidável. As comidas, ainda mais. A hospitalidade foi ímpar. Sem par. Talvez, lá fora do país continente de nome Brasil, com tantos problemas atuais, foge ao escopo desta crônica enumerá-los, não tenha tanto para contar, sobre as pessoas, gentes como a gente, uma delas me disse, com aquele linguajar cantante como o canto de um pintassilgo que um dia me escapou da gaiola, inda melhor pra ele, pra mim confesso ter sido tão bom quanto, quando meu interlocutor se referia ao lugar onde morava em Fortaleza, era uma cabana tosca de periferia, quase uma favela carioca, de nome Barra do Ceará, precisamente na Favela do Gueto, ou Goiabeiras, onde o tráfico impera, a lei do mais forte prepondera, quando dele ouvi a palavrinha mágica, que entrou pelos meus ouvidos como o canto do canarinho belga comprado inda há pouco: “Vishshshsh”, foi que acabei de escrever este escrito, que ainda ecoa dentro de mim como um grito, um uivo de saudade prematura do belo Ceará. Com seus problemas como os tempos cá. Neste Brasil tão díspare e lindo, pena que mercê de tantas falcatruas como as que não nos acostumamos, tomara a coisa há de mudar.
Vishshshsh…