Agora são quatro horas e meia do dia dezenove de março. Como de costume acordo com a madrugada. Ainda mais numa manhã silenciosa como a de hoje, na solidão de uma casa beira lago, mal se percebe, logo à frente, a represa doce de Camargos. Uma chuvinha de águas bem vindas desprende-se do alto. Embora não se possa ver imagino a felicidade do homem do campo, depois de uma estiagem de mais de dez dias, quando a safrinha plantada dias antes fechava a esperança de um futuro sorridente. Agora, depois da chuvadonha de ontem, acompanhada de raios e trovões, quão apetitoso seria pisar a terra umedecida pela santa chuva que na cidade asfalfaltenta fez estragos, alagou ruas, pôs ao desabrigo famílias inteiras, principalmente os mais necessitados. Aqui, na linda casa onde passei a noite, em companhia de mim mesmo, por vezes, nem sempre, a solidão é a melhor companheira. Não quero afirmar que gostaria de viver sempre assim. Perdido em minhas lúgubres lucubrações, tentando confabular apenas com um interlocutor chamado computador, exercitando o teclado do meu notebook antigo, acostumado comigo, onde escrevo um cadinho de quase tudo que me passa pelas ideias em atento desvario. Dada à escuridão que predomina do lado de fora da residência no município hospitaleiro de Itutinga achei por bem acender a luz. A sala onde escrevo, espaçosa, notebook recostado a uma mesa enorme, própria a receber mais de vinte convivas a um lauto jantar, ou almoço, dela emana luz, em conflito com a escuridão que ainda paira do lado de fora, logo a luz do dia volta a raiar. A varanda ampla, onde meus dois cães Border Collies dormiram, o Pirunguinha e a Valquíria, exibe duas luzes acesas, para tentar mitigar em parte a escuridão ambiente. Ao acordar, depois de um sono leve, sábado para este domingo, que antecede uma nova semana na cidade onde vivo, entre iguais, depois de um banho reconfortante para me refazer das lidas de ontem, passado parte dele em outro lugar que amo tanto, outra represa resultado da doma do mesmo rio, o Grande, após navegar, sob um sol de rachar, em meu bote inflável, movido a bateria, aqui cheguei depois de uma curta viagem em minha pratinha (caminhoneta) de pneus novos, mais segura, depois do chuveiro, de escovar os dentes, ainda sem experimentar um desjejum frugal, vou fazê-lo em Itutinga, abri a porta de vidro e ferro, a da frente, e logo cuidei de alimentar meus dois amigos cães, já nomeados antes. Ambos, percebi pelos olhares de carinho que me lançaram, foi como se agradecessem a ração de boa marca que trouxe ontem da cidade outra, a minha querida Lavras do antes funil que a represa engoliu. Trazendo ainda mais beleza aos ares de cá e dali.
Nem bem nascia quatro da manhã tentei caminhar um cadinho pela orla da represa de Camargos. Demoveram-me da intenção gotas grossas de chuva, caídas da escuridão dominante desse domingo que logo cede espaço a segunda, a terça logo entra, para dar lugar à quarta, à quinta, a subsequente, ao sábado, de novo renasce das cinzas de sábado um novo domingo, dia de folgar, que dele uso na intenção de escrevinhar, expor meus devaneios meio insanos, pois, caso os guardar dentro de mim ninguém vai poder saboreá-los.
Agora, menos de meia hora que comecei a digitar esse texto, dos tantos que tenho dito, creio serem mais de dez mil, o reloginho que fica no rodapé do meu notebook preto acusa cinco horas e vinte e oito minutos. Um mais minuto se passou nesse interregno. Quando passei de uma linha a outra, ainda sobre o mesmo tema: a solidão e a escuridão como testemunhas. A eles acrescento o silêncio da madrugada inspiradora. Estou a escrever sem meu par de óculos. Outro desafio que a idade me aconselhou a ser prudente, principalmente no exercitar-me furibundamente nas corridas loucas que os finais de semana me fazem presente. Depois de malhar contumazmente numa academia que creio estar enjoada de me ver sempre ao cair da tarde, depois que o médico urologista dá descanso ao consultório, ao bisturi, outro companheiro do qual não desejo me privar tão tempranamente. Espero, pelo menos aguardo pacienciosamente.
Em pouco menos de meia hora estarei de volta à estrada. Percurso que já percorri pelas próprias pernas mais de três vezes. O tempo dessa carreira louca foi bem mais longo que o da minha caminhoneta calçada em pneus novos, pena que minhas pernas andejas não se permitam ser trocadas a exemplo dos pneus dos automóveis. Caso fosse exequível, lógico que o faria, sem pensar duas vezes.
Fiz um breve intervalo nessa minha crônica de hoje cedo. Deixei meu computador entregue a sua memória ancha, ao seu teclado negro, ao seu mouse que pouco é usado, a não ser para mover a pequena seta que obedece fidalgamente ao seu comando.
Dei uma passarinhada d`olhos do lado de fora da sala onde escrevo. A mesma escuridão, o usual silêncio, ainda predominavam. Oiço apenas o murmúrio febril dos meus dedos a digitarem este texto. Os dois amigos cães, já alimentados, olham o entorno em sua eterna vigilância digna dos mais dedicados amigos, que de fato são. A claridade de um novo dia já se acusa na linha do horizonte, um azul modesto se assanha todo, preparado para a entrada triunfal do sol, talvez volte a chover, tomara em gotas mansas que não sejam portadoras de tantas vidas ceifadas prematuramente, como de vezes antes.
O lago de camargos está levemente marolado. Nenhuminha luz acesa, fora a minha, aparece do outro lado da represa. Um verde escuro, pela falta de luz solar, mal responde ao meu cumprimento. Talvez ele não escute o meu bom dia, ou se faça de surdo ao meu bem estar. A luz da cozinha se mostra acesa. A me fazer lembrar do cheiro apetitoso de um bom café com pão fresquinho, lambuzado de manteiga pura, como inocente é a alma dos meus amigos Pirunguinha e Valquíria, meu casal de Border Collies, que logo, ao primeiro cio, me darão netos caninos, já que de carne igual a minha já existe o Theo.
Paulatinamente a luz de um novo dia já aparece no alto do céu. Ainda não se trata de um azul anilina, o céu está nublado, fazendo-nos entender que mais chuva há de vir, para alegrar ainda mais o bom homem da roça, ao qual admiro sempre mais.
Em pouco tempo estarei de volta à cidade. Adeus silêncio, até mais ver escuridão. Como também vou me despedir da solidão. Que vezes existem faz bem a alma, à inspiração. Como por vezes a companhia de outros iguais aquece-me por dentro, como a chama da lareira acesa faz aquecer a chama da paixão. Entre pessoas que se amam, a combustão.
Agora mesmo me despeço, tanto do silêncio, quanto da escuridão. Vou deixar a solidão falar sozinha, parece insanidade falar com a gente mesma. Mas assim procedo, quando menos percebo, estou a escrever sobre mim mesmo. Essa é a vestimenta do verdadeiro cronista, figura que me toma de assalto, sempre, mas não sou absolutamente roubado dos meus pensamentos avoantes, como a garça branca que de pouco avoou da superfície da água da represa de Camargos, onde passei horas baldias curtindo tanto o silêncio, entremeado a escuridão, tentando compreender o por quê do tanto que me faz bem experimentar, cá dentro do cerne, a doce companhia da solidão. Já são seis horas da manhã.