Envelhecer sozinho é uma desgraca. Mal acompanhado pior ainda.
E ficar velho é inevitável e inquestionável. O tempo passa e aparecem as doenças.
De repente a visão claudica. As juntas ringem e quase nos fazem dobrar os joelhos de tanta dor. A barriga cresce e desaparece o andar de baixo. E a gente se esquece pra que serve aquilo que nem mais tem serventia para urinar. E tudo que era bom perde o sabor. E a nossa dentadura desaparece num copo d’água e não gruda mais nas nossas gengivas rosadas. Nem com Corega ou Super Bonder. A gente acaba perdendo o olfato. Não sentimos mais o cheiro azedo de um flatus que sai sem querer debaixo do cobertor.
Quando se fica velho a casa da gente fica vazia. Ninguém mais nos visita a não ser para pedir um favor. Um dinheirinho emprestado. Uma doação a creche dos filhos das mães solteiras. Um aval para alugar uma casa cujo aluguel vai ficar por nossa conta e arriscado de não ser pago. Mas ser velho tem suas vantagens. De ter um assento reservado no ônibus lotado. Como se os jovens respeitassem e nos dessem aquele lugar. De pagar meia entrada nos cinema e museus. Pra quê pergunto eu? Se a gente quase não mais enxerga e não sai de casa? Ser velho ou idoso pra mim não é padecer no paraíso. E sim mofar no inferno depois de perder o juízo.
Mas falando de coisas e loisas sérias. Deixando de fazer graçinhas como se fosse um meninozinho que não mais sou embora pense que seja.
Vou contar a historinha que me contou a veinha do seu Onofre.
Ele e ela já passaram e muito dos tantos entas. Se contar a idade dos dois nem com mais de dez dedos a conta daria conta de contar quantos anos são.
Creio que eles já fizeram bodas de ouro beirando a de carvalho. Já que se passaram mais de oitenta anos juntos.
Seu Onofre pouco enxerga. Dona Marieta finge que vê.
Caduco e tinhoso seu Onofre teima em andar de carro. Dona Marieta esconde a chave e jura que não sabe onde ela está.
Na hora de comer cadê a dentadura? Seu Onofre mastiga sem poder.
E na hora de dormir? Seu Onofre dorme peladinho. E dona Marieta, todinha recatada, vira de lado e reza um Padre Nosso e dez Aves Marias. Ele ronca e elazinha ressona mais baixinho para não incomodar seu veinho.
E na hora da janta? Dona Marieta é uma cozinheira de mancheia. E seu Onofre adora comer com o prato na mão. E faz uma lambança danada. Mas quem diz que ele aceita reprimenda? Emburra sempre que lhe chamam atenção.
Naquele domingo de agosto fiz-lhes uma visitinha de médico. Rapidinha como o farfalhar de asas de um beija flor.
Encontrei os dois quase na hora de dormir. Lá pelas sete da noite. A televisão ligada. As luzes da casa todas acesas. E ambos quase de olhinhos fechados.
Dona Marieta de camisola cor de rosa. Seu Onofre com um calção que deveria ter sido do seu paizão.
Eles já haviam jantado. Prestes a irem pro quarto.
Pelo adiantado da hora não demorei muito. Deixei os dois no quarto. E fui embora.
Na semana seguinte soube noticias deles. Aquela foi a última vez que os vi.
Dona Marieta partiu dois dias antes. Seu Onofre nem esperou seu velório. Morreu assim que sua amada Marieta foi sepultada. E foi enterrado juntinho dela. Parece que no mesmo caixão.
Assim acontece com a gente. Quando morrer minha veinha, além de sentir falta, vou-me embora no dia seguinte. Quem sou eu sem ela?