Um dia depois do meu aniversário. Na data de ontem completei setenta e seis. Deixei os setenta e cinco pra trás.
Não me sinto velho, nem idoso talvez. Sinto-me como aquele menininho que corria de pés descalços naquela rua que daqui se avista a mão esquerda. Rua essa bastante modificada onde passei a infância e parte da juventude até me tornar adulto. Quando para aqui retornei, médico feito, nos idos anos de um mil novecentos e setenta e sete. A dar inicio a minha especialidade. Que se alonga até os dias de agora. Não seria muita pretensão minha pensar que por muitos anos ainda irei continuar minha lida. Já que não penso em me aposentar tão cedo. Pois ainda tenho ganas de trabalhar por muitos anos mais.
Esses anos todos que vivi não pesam tanto nos meus costados. Não sinto o peso dos anos. Não me canso de caminhar. Não mais conto anos e nem desenganos. Sou feliz dentro da minha infelicidade. Tenho momentos de introspecção e apatia. Coisas e loisas de um poeta que não me atrevo ser.
No dia de hoje acordei um ano mais velho. Como de costume bem cedo. Passei um final de semana dos mais agradáveis. Na minha rocinha que amo tanto. Tendo ao meu lado um amigo de nome Marcelo, meus filhos e amados netos.
Na manhã dessa segunda feira ao acordar a primeira providência foi ir ao banheiro. O espelho me recebeu com cara de poucos amigos. Não era ele a sim a minha. Aquela cara envelhecida, naquela noite mal dormida, onde me vi aos setenta e seis anos.
E o espelho me confidenciou: “vês se te enxerga velho rabugento. Não tens mais vinte anos. Sua infância se foi anos atrás. Já viveu o bastante. Logo vais desocupar a moita. Deixa de pensar que és criança. Se tentas brincar com seus netinhos vais fazer lambança. Não tens pernas pra correr atrás deles. Nem fôlego de gato, seu velho carcomido pelas traças e carunchos. Não penses que ainda podes tralhar por muitos anos mais. Cuides logo da sua aposentadoria. Já passou da hora de descansar seus ossos osteoporóticos. Cuidado ao subir a escada, já que podes cair e quebrar a bacia. Ai vais dar trabalho aos cuidadores. Quem vai trocar seus fraldões? Se você nem teve o trabalho de trocar as fraldas dos seus filhos e netos? Agora vives nos descontos. Nem sabes se vais viver o segundo tempo… Prepare-se para seu velório. Escolha o terno que vai lhe acompanhar. Não penses que quem chora derrama lágrimas verdadeiras. Sua viúva pode se consolar em mãos alheias. Meu velho, se pensas que ainda tens muito tempo pela frente enfrente a realidade. Ela te acena com alguns anos a mais. Não tantos como pensas. Lembre-se que seu querido pai viveu até os setenta e sete. Desfrute os parcos anos que lhe restam. Viva-os como se fossem os melhores de sua vida. Caminhe antes de se abengalar de vez pra sempre. Viva o dia de hoje como se fosse o derradeiro. Deixe suas memórias escritas em mais um livro. Sem pensar que ele vai ser lido pelas futuras gerações, enganas-te. Guarde seu lugar no campo santo. Se preferires um forno crematório não penses que vão ficar baratas as suas cinzas. E onde elas vão ser jogadas? Já pensou nesse detalhe? Velho, se ainda pensas ser menino, lembre-se de ti na infância. Tu criança fazias xixi na cama. Agora que envelhestes continua a fazer bem pior. Olhe-se de novo na minha cara. Vês se te enxergas velhote. Mire nos seus cabelos brancos. Nas olheiras que rodeiam seus olhos baços. Já pensastes a quem deixar sua herança? Dividas seus bens agora em vida. Antes que seus herdeiros se digladiem em disputas aguerridas. Se tens valor agora depois de morto e sepultado nem vais ser lembrado. No máximo um retrato na parede, nem isso. Umas lágrimas derramadas que logo irão secar. Meu velho, não penses nem imagines que vais viver para sempre. Não vais ficar pra semente e sim vais te transformar em adubo na terra de sua cova quente. Olhe-se de novo pra mim. Não penses que te quero mal. Apenas e tão somente retrato a realidade. A velhice é uma merda. Procures fazer dela o melhor que puderes. Antes que outros o enterrem e joguem uma pá de cal por cima do seu caixão e guardem sua ossada num saco preto. Pois logo outro morto irá ocupar o seu lugar”.
De imediato não quebrei o espelho. Pois dizem que isso pode dar azar.