Sem lenço nem documento

Sob um frio de começo de julho o encontrei.

Era ainda bem cedo. Estava tão frio que, naquela manhã de sexta feira, encontrei meus peixinhos aquarianos enrolados em grossos cobertores.

Aqui na minha cidade as árvores tiritavam de frio. A praça principal envolta em grossa neblina.

Passei pela praça por volta das cinco e meia da manhã em direção a padaria costumeira onde tomo meu cafezinho antes de chegar a minha oficina de trabalho.

Como de costume assim o faço. Sou madrugão como o padeiro daquela casa onde se fazem pães.  Encurto as noites na intenção de prolongar os dias.  Dessa maneira tento alongar o resto dos dias que me sobram. Noites não são bem vindas. Dias sim os tenho em alta estima.

Aquela praça me seduz. Foi ali que, dando voltas no rela do jardim. Numa data bem antes da de hoje. Eu no sentido do ponteiro dos relógios e ela ao revés. Nossos olhos se encontraram. Um dia depois nossas mãos se entrelaçaram. E até hoje, quase cinquenta anos depois, continuamos juntos. Não digo até que a morte nos separe. Pois nem ela vai dar conta de nos apartar em outra vida.

Nessa madrugada de sexta feira. Com a temperatura intimando pinguins se encapotarem. E esquimós se agasalharem. Ao chegar àquela praça percebi. Com meus olhos inquiridores. Um vulto dormindo num banco. Seria aquilo um homem dormindo ao relento? Ou um monte de cobertores ali deixados a espera de seu ocupante?

Movido pela curiosidade dali me aproximei com cautela para descobrir quem o ou quê estaria dormindo naquele lugar. Se fosse apenas um monte de cobertas pra mim seria novidade. Naquela friaca intensa aqueles cobertores deveriam estar fazendo falta a alguém.

Ao me aproximar daquele banco. Onde avistei aquela cena esdrúxula. Um tanto fantasmagórica.  Tive a curiosidade de constatar quem ou quê seria aquilo.  Um tanto receoso, com a mão direita desfiz minha dúvida.

Era uma pessoa dormindo naquele banco da praça sob um frio intenso.

Era ali sua pensão, sua cama, seu abrigo. Ele não tinha teto. Nas noites de lua cheia ele olhava as estrelas pensando ser uma delas.

Meu relógio mostrava antes das cinco e meia. E ele ainda dormia a sono pesado.

E de repente perguntei a mim mesmo: “como é que pode? Eu, e tantos outros, numa cama macia, em boa companhia, essa mesma cama nos cospe bem cedinho. E não conseguimos ficar ali nem um minutinho mais. E a insônia nos devora. E cedo na hora nos levantamos por termos perdido o sono. E ele, um sem teto, dorme ao relento seu soninho bom como se fosse uma criancinha que se recusa a acordar sem antes sugar sua mamadeira cheinha pelas beiradas de uma mistura de leite quentinho que sua mãe preparou com tanto carinho”.

Esse homem, que dormia ainda sob felpudas cobertas me causou estranheza.

Seu nome era Juvenal. Era um andarilho que na minha cidade apeou a noite passada. Com os olhos ainda pregados de sono ele acordou sem olheiras. E não se intimidou com a minha inoportuna visita. Aquela hora bem cedo.

Movido apenas pela curiosidade a ele indaguei: “de onde vens? Sempre dorme aqui? Sei, pelo visto num papelão que te cobre, seu nome gravado é Juvenal. Qual a sua idade? Vives a esmolar? Nunca trabalhou de verdade? Onde tomas banho? E onde se alimenta? Não sentes frio”?

Juvenal, sem esboçar reação. Acordou e apertou-me a mão. E deu respostas curtas ao meu interrogatório.

“Vim de longe, de Juiz de Fora. Sou nascido numa cidadezinha do Nordeste no sertão da Paraíba de nome de ave- Patos. Vim de lá pensando encontrar trabalho em São Paulo e logo me desencantei com aquela cidade grande. Fui roubado na rodoviária. Perdi todos os meus documentos. E passei o pão que o diabo arrotou. Fui preso e experimentei no lombo a borduna o guarda. Felizmente uma alma piedosa me libertou. Sem serviço, sem emprego passei a ser mais um andarilho. Passo os dias fazendo artesanato e vivo do que faço. Hoje estou aqui. Não tenho pouso certo. Viajo sem pagar passagem. Ando pelas estradas sem lenço nem documento. Descobri a felicidade em cada lugar que passo. Qual seja nesse mesmo banco onde durmo agora fazendo o que gosto. Não tenho parança nem quem me cobre aluguel. Não preciso de nada mais. A mim me basta olhar as estrelas e ter a lua como minha companheira nas noites que ela brilha junto as estrelas. Sou feliz sem lenço nem documentos. Não preciso de nada mais embora muitos pensem que eu seja um pária social.”

Despedi-me do Juvenal pensando nas noites que passo sem dormir direito. Quem sabe, me desvencilhando dos meus lenços e documentos seja mais feliz do que tenho sido?

 

 

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