” Você ainda trabalha?”

De vez em quando ainda me fazem essa pergunta.

Como se fosse marcada a data de parar de trabalhar.

Pra mim o trabalho é bênção. Alguma coisa que ainda não pensei em deixar de lado.

A cada dia não vejo a hora de deixar a cama. Mesmo nesses dias frios saio do meu apartamento a mesma hora costumeira. Subo um morrinho em declive acentuado sentindo nas narinas um friozinho um tanto impertinente e aqui chego bem cedinho. Nessa segunda feira o porteiro do prédio já estava presente. Seu Zito é um madrugão como eu. Acostumado à lida na roça, retireiro que um dia foi.

Se um dia deixar de trabalhar, por favor, eu lhes peço. Não me deixem fazer do ócio o começo do fim. Que eu ainda continue a fazer dos meus dias algo produtivo. Que não me acostume a passar os dias no vazio assentado a um banco de uma praça qualquer. A olhar o vazio do nada numa casa feita sob encomenda para os idosos. Pessoinhas puras que passaram a vida inteirinha no trabalho. Deixando aos filhos e netos a casa onde moraram. E construíram a duras penas. E depois da aposentaria, após infindáveis anos dedicados as suas profissões, foram alijados da própria casa. E levados a morar num asilo. E nem mesmo têm a ventura de receber a visita de algum aparentado. E esperam a morte a espera do descanso eterno.

Desejo passar o resto de tempo que me resta enfiado na mesma profissão que elegi nos meus verdes anos. A medicina ainda me seduz. Atendendo meus parcos pacientes espero ainda poder atenuar suas enfermidades. Ou quem sabe ajudá-los a minorar seu sofrimento já que a cura pode não acontecer.

Pretendo continuar na lida até quando me permitirem. Que meus setenta e cinco anos se alonguem em muitos mais. Numa vida cercada de amigos. Tendo meus filhos e netos aqui pertinho. Espero que nosso convívio seja amistoso. Que as rusgas sejam resolvidas não na mesa onde comemos e sim depois.

Um dia me perguntaram, quando subia pelo elevador: “o senhor ainda trabalha? Faz um tempão que o senhor operou o meu avô. E ele ainda fala, nos seus quase cem anos, lúcido e observador- aquele doutor sacou minha próstata. Quase morri de dor quando ele retirou minha sonda. Ainda bem que hoje, se urino bem, devo a ele. Creio que a operação bem sucedida se deu nos anos setenta. O senhor se lembra do Seu Onofre? Ele até hoje anda pelas ruas dizendo maravilhas da operação que o senhor fez.”

Fiz que me lembrasse, embora fossem tantos pacientes que por aqui passaram. Que não tenho a capacidade de me recordar de quantos foram ou do nome de cada um deles.

Pretendo continuar na lida por muitos anos mais. Ainda me sinto capaz de exercer a medicina ainda melhor que dantes, pois aprendi a ouvir. Hoje trato não a doença e sim o portador. A decisão que tomo é repartida com quem me procura. Ouço mais que falo. Aprendi que muitas queixas são fantasiosas. Que nascem de uma situação de conflito interior.

Se me perguntarem se ainda trabalho tenho a reposta na ponta dos cascos: “vou trabalhar por muito tempo ainda. Espero não dar trabalho a quem por ventura tiver de cuidar de mim”.

 

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