Os medos do Tião do Cervo

Quem não se lembra dele, daquele senhor amável. De cabelos encarapinhados. Sempre pronto a ajudar. Que vivia naquele pedacinho de chão que um dia a represa engoliu.

Pedacinho de terra que fazia divisas com as minhas.  Sempre fomos amigos do peito.

Ainda me lembro, de tempos idos, quando ainda não existia a represa do Funil. E era facinho driblar um riachinho na intenção de chegar ao seu lado. Bastava um pulinho e lá estava. A ouvir causos que ele contava. E colher na sua horta de couve cenouras e beterrabas. Mandiocas que se desmanchavam de tão macias na água quente da panela. E eu voltava à cidade sem ser preciso ir à feira. Sem pagar nadica de nada. Pois éramos amigos de verdade. Embora em poucas ocasiões nos encontrássemos.

Meu amigo Tião tinha o costume de não perder arrasta pés. Era um dançarino de pés cheios de ritmo. Segundo me contaram. No que deposito a maior descrença. Um dia, já era tarde da noite. Durante um baile na vizinhança. O velho Tião dançava com uma dúzia de pirulitos no bolso da calça. Desses que não se encontram mais. Feitos de puro açúcar com a doçura do mel, e bem pontudo. Durante a dança, com uma parceira recatada. Um desses pirulitos empirulitou-se nas partes intimas da mocinha. Foi quando o velho Tião levou um tapão na cara sem saber a razão. Até ele explicar que o cutucão foi devido ao pirulito que trazia no bolso e não aquilo que se imaginava. Foi um Deus nos acuda. Acuda ele, bem explicado.

O único defeito que o amigo Tião tinha era esse. Segundo o que se dizia- bondade purinha.

De fato. Ele era a bondade em pessoa. Criou, além de duas dezenas de filhos, uma centena de netos. Que viveram em sua companhia até virarem gente de bem como ele.

Um dia fiz-lhe uma visita.  Alguém me contou que ele não andava bem de saúde.

Era um sábado perdido num ano que não me lembro mais de quando foi.

Já faz tempo.

Encontrei o velho Tião acamado.  Estava uma quentura de fogueira de São João com as brasas ainda crepitando. E Tião enrolado em cobertores felpudos.

Ele quase não falava. Parecia bem mal de saúde. Febril desde a semana passada. A mim me pareceu estar com uma impertinente infecção respiratória. Ou coisa pior.

Minutos depois Tião se levantou. Pulou da cama dizendo-me melhor.

Foi ai que puxei prosa.

“Tião. Tá tudo nos conformes? Tá tomando algum remédio? Foi ao médico? Da última vez que aqui estive você não tinha nada. Estava até pescando. Não se lembra? Cuidado amigo. Não tem mais idade para ficar trabalhando até tarde. Deixa a horta de verdura para os filhos e netos cuidarem. Não tens medo de morrer?”

Tião, olhando fundo nos meus olhos. Com aqueles olhos da cor das asas das maritacas.  Já assentado a um banquinho tosco.  Manifestando o desejo de sair de casa e ir à horta. Acabou me dizendo em alto e bom tom.

“O único medo que tenho é ficar sem trabalhar. Não poder sequer me manter de pé. Não poder dançar agarradinho com uma das minhas namoradas. Não dar conta de cuidar da minha horta onde planto um cadinho de tudo. Tenho medo sim de não ter amigos pra me visitarem. Tenho medo de perder a saúde. Um medo enorme de não ter como criar minha família como fui bem criado. Tenho medo sim de um dia essa represa me expulsar daqui. Pois esse é o meu lugar.”

Aquela foi a última vez que vi meu amigo Tião do Cervo. Poucos medos o afligiam. E ele morreu aqui pertinho. Longe do seu pedacinho de terra que ele tanto amava.

De vez em quando olho pra sua casa. Agora vazia dele e cheia de lembranças que ele deixou atrás.

 

 

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