Ele morreu de pressa

Que eu saiba se morre de ataque de coração.  De doenças respiratórias.  De patologias do sistema nervoso.  De tantas outras doenças, que se fosse aqui enumerá-las essa crônica de agora cedo se alongaria além da última linha.

Morre-se, nos tempos de hoje, de tantas causas mais e mais conhecidas. Dantes não tínhamos tantas ferramentas para elucidar o porquê de tantos porqueres.  Os exames agora são mais esclarecedores. Tantos aqueles feitos em laboratórios quanto aqueloutros quando nos enfiam naqueles aparelhos de alto custo. E de lá saímos meio tontos de tanta modernidade.

Morrer é inquestionável e inevitável.  Não se pode postergar a vida por mais que desejamos.

Um belo dia nascemos. Tornamo-nos gente grande. A velhice chega. Pra uns mais depressa ou a passos de tartaruga manca. E, quando menos se espera chega a hora de nossa despedida. Não aquela de quando nossa pequena jornalista pegava o busão na rodoviária de partida rumo ao Rio de Janeiro. E nós, seus pais, não conseguíamos conter as lágrimas que desciam  em cascata pelo canto dos olhos. E elazinha voltava.   No entanto a morte não permite volta. Ainda desconheço se se pode ou não.

Naquela madrugada de junho,  começo de inverno, uma camada de gelo fino cobria a pastaria.

Tião Sofrência, como de costume, foi enxotado da cama ao cantar do galo.  Era antes das cinco. Lá fora mal se via a luz do dia. Uma densa cerração encobria tudo ao derredor.

Tião tomou seu cafezinho requentado mal acompanhado de um pão amanhecido frio como a geada. Encapotou-se num velho cobertor e foi a lida.

As vacas já o esperavam famintas do lado de fora do curral. Ele morava com ele mesmo. Não teve tempo, nos  seus mais de sessenta anos, de encontrar uma parceira para dividir as suas carências. Ali faltava tudo. Menos disposição para o trabalho.

Tião, alcunhado de Sofrência por aparentar sofrimento.  Era um senhor sempre apressado. Tudo nele era pra ontem. Sofria por antecipação.  Quando as coisas não iam bem ele, antes de acontecer o pior já se imaginava no fim, embora fosse apenas o começo.

Tião era um sujeito sofredor. Mesmo sem dor ele sentia. Mesmo não sofrendo na pele uma desilusão ele era a cara do sofrimento.  Tudinho para elezinho era motivo de queixumes.  Uma pedra na botina fazia dele  um rosário de lágrimas.  E quando uma vaca morria então?  Ele morria junto. Só faltava servir de pasto aos urubus.

Afoito, apressado, quando o caminhão leiteiro buzinava no alto do morro ele já estava lá. Bem antes da hora marcada.

Tião era um sofredor sem causa aparente. Bastava que olhassem pra ele de um modo diferente ele virava a cara pensando que era com ele. Tião não tinha conserto. Nasceu aos cinco meses. Com um ano de idade saltou do berço querendo andar.  Quantos tombos levou perdeu a conta. Sua querida mãe não suportou tamanha ansiedade do menino. Morreu prematuramente.  Quando Tiãozinho contava apenas   com cinco aninhos.

Tião foi criado pela avozinha.  E como elazinha gostava dele.  Pena que dona Marieta se foi no ano passado. Tião sofreu demasiado com a perda da amada avó.

Naquela manhã de fazer esquimó se mudar para uma praia qualquer Tião acordou como sempre apressado.  Lavou a cara na água da bica pra afastar o resto do sono. Ainda por cima Tião era sonâmbulo. Andava durante a noite. Ia ao curral sonhando que ordenhava as vacas. E acordava todo molhado pensando que fosse leite derramado. Lastimando-se pelo prejuízo de o leite não ter sido vendido ao lacticínio.

Naquela madrugada gelada Tião  Sofrência sofria pela ausência da querida avozinha.

Já  no curral, ao final da ordenha. Era ainda cedinho.  A espera da chegada do caminhão  leiteiro  que deveria estar no alto do morro lá pelas beiradas das oito horas.

Tião mais uma vez se antecipou. Com a pressa costumeira.  Com a carroça puxada por uma égua charreteira.  Com a qual diziam ter um causo. Aconteceu um imprevisto previsível.

A tal égua acabou atolando num mata burro ( que deveria ser mata égua). E na queda o desinfeliz Tião foi junto,  quebrando o pescoço.

Encontram os restos mortais do Tião Sofrência um dia depois.  Mortinho da silva, embora não fosse esse seu sobre.

Se me perguntarem qual seria  a causa mortis do Tião eu diria. Ele morreu devido a pressa, bem depressa. Apressado como sempre foi.

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