Em tempos idos uma cruz foi levada ao calvário.
E, a partir de aí, cada um de nós temos a nossa.
O peso depende de quem a carrega. Pra muitos ela pesa muito. Pra outros a cruz pesa bem pouquinho.
Não nos joguem aos ombros culpa maior que não temos. Tenho dito e repito.
Em menino a minha cruz se chamava aritmética. E como tinha aversão aos números. Desgosto que me acompanha até os dias de agora.
Já mais crescidinho a minha cruz mudava constantemente. Não sabia o que fazer frente às decepções que se interpunham no meu caminho. Bastava um empurrãozinho pra me sentir contrariado. E euzinho ficava bem zangado.
Uma vez adulto outras cruzes me faziam perder a paciência. Se por ventura me esquecesse do que fazer no dia seguinte ai de mim. Perdia o sono. Coisa que me atormenta até nos dias de hoje.
Mas cada vez mais o peso da cruz tem sido mais leve. Talvez seja por que a idade tem me acompanhado. E mais e mais me tornei paciencioso. Embora a calma e a tranquilidade tenham se manifestado de vez em sempre o desassossego toma conta de mim. E acabo vendo o burro atolar no atoleiro.
A cruz do meu amigo. De nome Felisberto. Marido da dona Tiana. Muda a cada ano. A principio elezinho tinha verdadeira ojeriza pelo trabalho. Amava acordar bem cedinho. Quando a ele perguntavam a razão ele respondia num sorrisão escancarado: “quer mesmo saber? Pra ficar mais tempo à toa”.
Felisberto não tinha conserto. Nem com S nem com Ç. Pois não sabia consertar nadinha de nada. Nem fazer um concerto ao piano. Com C. Bem entendido.
E assim ele passava o tempo. “Por mais que precioso.” Sempre dizia. Aquela pracinha do centro era onde ele passava seu tempo ocioso. Já que com o trabalho não fazia as pazes, eram inimigos figadais. E ele sempre dizia quando lhe ofereciam emprego: “eu, desconjuro. Meu fígado não anda nada bem. Não sei por que. Não bebo desde a semana passada. Talvez seja por isso. Como me faz falta uma pinga da boa. Ela ajuda a limpar meu fígado. É um remedinho saudável que não se vende em farmácia e sim no botequim da esquina”.
A cruz do meu amigo Felisberto tem sido do peso que ele tolera. Trabalhar não lhe apetece. Carteira assinada nunca teve na sua vidinha descomplicada.
Ele vive não se sabe como. Não tem renda nem salário. A dona Tiana, coitadinha delazinha. Faz doces para vender na feira. E de vez em quando leva alguns trocados para a casa. Graças a ela não pagam aluguel. A conta de luz e água ficam sempre dependuradas no varal da pendura. “Pago quando puder. Não me chamo Abreu”?
De fato seu sobre é Abreu. Como o meu. Não carece dizer se não pagar nem eu.
A cruz do meu amigo Felisberto tem sido bem levinha. Ele não toma vergonha. Passa o tempo todo jogando milho aos pombos. Naquela pracinha do centro. Assentado naquele mesmo banco da mesma pracinha costumeira.
De tempos pra cá a cruz do Felisberto aumentou sobremodo seu peso morto.
Sabem quem veio morar com ele? Exatamente a pessoinha com quem nunca teve a menor simpatia. Era justamente elazinha que deu a vida a sua amada dona Tiana. A sua sogra não querida, naquela segunda feira amaldiçoada, bateu à porta de sua casa. De mala e cuia.
A partir de antão a vida do Felisberto mudou pelo gesso. Ele se sentiu engessado. Tolhido nos seus movimentos. Não se sentia a vontade na própria morada. A sogrinha deveras era uma pedra na sua sandália.
Foi quando nos encontramos, na mesma praça, no mesmo banco do mesmo jardim. Tudo era igual. “Mas só que agora tenho a sogra a morar perto de mim”. Arrematou ele.
Senti o amigo Felisberto amuado. Parecia desolado, sem chão onde meter a botina.
“O que foi que aconteceu amigo? Você não está bem”?
Ele, quase sem querer falar. Acabou respondendo.
“Minha cruz, que era bem levinha. Aumentou mais que o dobro. Sabe quem veio morar comigo? Nem imagina”.
Já sabia, de antemão, na contramão da desilusão. Da antipatia que ele sentia pela mãe da dona Tiana. Agora mais uma pedra na sola da sua botina. Uma cruz pesada demais na sua vidinha insossa. Que por certo tinha de levar à sepultura.