Enquanto eu puder

Poder nem sempre é querer.

Desejar alguma coisa fora do nosso alcance na maior parte das vezes se torna quase impossível.

Querer tocar o sol com as mãos. Afagar a lua que lá no alto brilha.

Acarinhar uma flor cercada de espinhos pode se tornar um risco aos nossos dedos finos.

Desejar amar uma mulher que não lhe deseja ao mesmo tempo com ela não se deve sonhar.

Mas sonhar é possível. Desde que os sonhos não se tornem alguma coisa impossível de serem alcançados.

Eu sempre fui um sonhador.

Desde molequinho sonhava crescer mais um cadinho. Infelizmente não cresci tanto. Agora penso estar encolhendo. Embora minhas idéias estejam espichando continuamente.

Enquanto. Palavra que enseja tempo. Durante o tempo em que. Quando…

Enquanto puder deixar o tempo passar fa-lo-ei sem pensar.

Enquanto puder postergar o meu viver nem por um instante deixarei de fazer.

Enquanto não puder perder o encanto nunca me desencantarei de olhar o sol. De ver as estrelas brilharem. De acordar bem cedinho. De me dar o prazer de ver uma borboleta pousar de flor em flor. De falar bem baixiinho aos ouvidos moucos daquela velhinha. Que não escuta, mas entende a vida que deve ser vivida e agradecida sempre quando acordamos.

Enquanto eu puder amanhecer lembrando-me daqueles que me presentearam com o bem maior que recebi. Qual seja meu viver. Não me esquecerei do prazer com que fui agraciado ao nascer. Olhando, olhinhos empapuçados, meio cerrados, o amor que minha mãe me recebeu, depois de sete meses de espera. E euzinho, apressado, irrequieto como ainda sou. Meio deslumbrado com o cenário que se despontava aos meus olhos. O mesmo que anos depois me acompanha nas lides nosocomiais.

Enquanto não perder o encanto estarei por aqui. Depois de mais de setenta anos de experimentar um cadinho de tudo. Meio nada. Um tanto desencantado de ver tantas coisas ruins entremeadas de boas. Regozijo-me por ser assim não assado. Um médico ainda não jubilado. Um escritor escrevinhador compulsivo. Um madrugão consumado e consumido pelas poucas horas de sono.

Enquanto eu puder viver em saúde moderada. Desde que não me deixem mofar num leito de hospital. Pretendo continuar por aqui. Caminhando pelas próprias pernas. Andando de um lado pro outro como noticia ruim. Pois as boas avoam.

Enquanto puder satisfazer as minhas vontades. De não precisar viver sob a tutela de cuidadores. De não dar trabalho a quem vive ao meu lado. Viverei modestamente na minha vida de sempre. Indo aos sábados a minha rocinha. Admirando embevecido os canarinhos da terra ciscando o esterco ao derredor do curral. O grito frenético das maritacas palradeiras empoleiradas na jabuticabeira. Dividindo as madurinhas comigo e os marimbondos desprovidos de ferrões.

Enquanto eu puder comer com meus próprios dentes. Num ato mastigatório consistente. Por favor. Deixem-me por aqui. E só me alijem de mim quando não mais puder sonhar. Mesmo que esses sonhos sejam descoloridos de cor. Mas saberei, com minha força interior, dar sabor as cores e vida aqueles que não desejarem mais viver.

Enquanto eu puder sobreviver às intempéries que eu possa temperar o insosso com o doce sabor de mel. Que eu possa acalmar o furor da chuva quando cai em intensidade máxima. E não deixe secar tanto os riachos. E não permita que morra aquele que deseja viver.

Enquanto um sopro de vida percorrer as minhas entranhas não deixem apagar a chama da vela que ainda brilha dentro de mim.

Enquanto eu puder. Não importam os anos que virão. Que me permitam continuar fazendo o que mais aprecio.

Dando cores as letras. Fazendo-as perfilarem-se unidas em frases não tão longas. Retratando esse cotidiano tão rico em fatos e acontecimentos. Fazendo dos meus leitores cúmplices.

Enquanto eu puder agradar a quem passarinha os olhos nos meus escritos sentir-me-ei sempre feliz.

 

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