Quantas e inúmeras vezes a gente diz, na impossibilidade de fazer aquilo ou aqueloutro: “pena. Não posso fazer nada por você”.
E passamos batido. Apressados como sempre. Atabalhoadamente em nossa azáfama de cada dia.
Uma vez, bem me lembro, quando ainda morava num condomínio pioneiro em nossa cidade, conhecido como Jardim das Palmeiras, ao andar por uma calçada, já perto de onde estou nessa bem dizer madrugada linda com a temperatura outonal, vislumbrei um homem a dormir exatamente onde não deveria estar. Seu corpo inerme se debruçava pelo passeio imundo. Num sono profundo talvez ensejado por alguma bebida de alto teor alcoólico ou uma droga nociva, que muito a ele se assemelhava a esta droga de vida que ele levava. Se é que aquilo poderia ser chamado de vida. Pra mim melhor que a morte o acolhesse em seus braços esquálidos. Desprovidos de carne e músculos e sim mostrando um amontoado de ossos brancos a espera de serem ensacolados num saco preto a fim de deixar livre a sepultura para receber mais corpos de aparentados que irão ocupar aquele espaço lúgubre que ninguém pode dizer que não vai morar lá.
E infelizmente não se pode solitariamente mudar o mundo. Se bem que ficar sozinho de vez em quando faz falta a gente. Assistindo, como eu estou neste presente momento. Cá do alto. Da janela do meu sétimo andar. Vislumbrando o dia despertar. As ruas e avenidas ainda vazias de pessoas e ricas em ditar inspirações. Ver o sol se levantar de seu colchão feito de penas de nuvens claras como os olhos daquela menina que um dia vi chorar. A lua cheia, ou me parece ser uma minguante, dar bom dia ao dia que renasce. Ao sol que desponta timidinho na linha do horizonte infinito. A rua de tantas lembranças ternas que ainda talvez durma sonhando com meus pais ainda vivos a espera de se despedirem de minzinho antes de pegar carona a escola de algum vizinho.
O fato retrato é tantas vezes, em outras crônicas pretéritas, deixei atestado o meu amor aos cães. Não aos gatos e sim as gatas da minha espécime ditas garotas ou mulheres maduras.
“Cães que ladram não mordem enquanto ladram”.
“Ladram os cães enquanto a caravana passa”.
“Quem tem cão não caça com gato”. “Cachorro picado de cobra tem medo de linguiça”.
“Quem dorme com cachorro acorda com pulgas”. “Cão na igreja, todo o mundo o apedreja”.
“Ninguém chuta cachorro morto”.
E outros ditos ditados são escritos sobre eles. Em verdade os melhores amigos que a desgracada raça vira-latas dos humanos já experimentou.
Já tive cães. Inúmeros. Não tive gatos. Pois considero os felinos muito independentes da gente. E pra mim não se apegam a nós como os cães. E gatos e cães podem ser tidos como inimigos. Mas, os piores inimigos a gente os encontra em nossa própria espécime.
Muitos humanos, se é que se pode chamá-los disso pois eles, espero não estar incluso, assim que os cães crescem, e seus dejetos aumentam, quem não aprecia um lindo filhotinho de qualquer raça que seja. E, meses ou anos depois, com o preço da ração dada aos pets, acabam por abandoná-los à beira de uma estrada, e o pobre canzarrão, que vai feliz na caçamba da caminhonete, pensando dar uma voltinha, é solto sem chance de pedir por favor, não me deixe aqui, pois amo a todos vocês. indistintamente, embora muitas vezes me tenham chutado o traseiro. Me amordaçaram quando lati logo a chegada de um parente mal intencionado que queria pedir dinheiro emprestado. Ou quando fiz xixi no pé da poltrona carunchada da sala de visitas. E fui enxotado de casa e acabei viralatando nas ruas. Sem eira nem compaixão por minha pessoinha que só tem olhinhos de candura para as crianças traquinas. Que me fazem de montaria como se eu aguentasse. Como um burro de carga tanto peso pesado. E agora, na minha senilitude, ao invés de me darem carinho. Na semana em curso completo quase vinte anos de fidelidade pura. Cuidando de vocês do lado de fora de suas casas enormes. Morando num canil de puro cimento onde tento dormir e não consigo. Tendo de engolir restos de comida de seus pratos fétidos e repletos de arroz embolorado e feijão estragado. E você, que pensava ser minha familia, quando fui adotado, retirado das mãos carinhosas das cuidadoras de uma casa de cães de rua. Já vacinado contra raiva e não sabia que vocês, meus falsos amigos, iriam ter raiva de mim por simplesmente amá-los sem saber que a recíproca não seria verdadeira.
Hoje, mais cedo que das vezes anteriores, meu relógio de pulso marcava quase cinco da manhã. Ao sair do meu prédio. Encontrando meu edifício das clínicas de portas cerradas, achegou-se a mim um cãozinho que viralatava pelas ruas com se fosse um pedinte. Não de comida e sim de afeto e amor.
Como estava escuro, uma brisa fresca assoprava as minhas costas, este mesmo cãozinho olhou-me como se quisesse falar comigo.
E esse foi o nosso diálogo: “olá. Como você se chama”? Primeiro falei eu.
E ele, entre assustado e intranquilo respondeu a minha pergunta latindo assim: “ainda não tenho nome. As pessoas não me chamam por nome nenhures. Aceito se o senhor me chamar Nenhures. Até que gosto desse nome. Soa, aos meus ouvidos escutadores bem melhor que Fura Sacos de Lixo. Como as pessoas me nomeiam. Será que o senhor pode me adotar. Eu não o conheço. Como é o seu nome? E qual a razão de acordar tão cedo? Por que não fica na sua cama macia até mais tardar”?
A principio inquietei-me vendo um cão falar. Mas, como sou escritor passei a acreditar. E respondi a elezinho: “sou médico urologista. Meu consultório é neste edifício. Chego aqui bem cedinho para escrever- crônicas e romances. A partir das oito estou prontinho a virar a casaca. Atendo atentamente aos pacientes que me procuram. E me metamorfoseio em homem comum. Já que considero quem tem o dom de escrever extra terrestres. Verdadeiros ETs”.
Foi a vez do cãozinho, ao qual batizei de Nenhures, abanar o rabinho e me dizer: “olha, meu distinto médico escritor. Acho de gostei do senhor. Ah! Acompanhado de um latido lindo. Como gostaria de ser adotado pelo senhor. Sair das ruas. Ter um lar onde passar meus últimos dias. Já que estou bem velhinho. Penso não durar mais que um ano. Se tanto”.
Meu relógio já assinalava quase cinco e quase meia hora depois. Acabei me despedindo do Nenhures dizendo, sofridamente: “infelizmente não pude”.