“E eu com isso”?

Lá fora o mundo parecia desabar.

A Rússia teimava em continuar a guerra contra a vizinha Ucrânia. Não havia solução para terminar o conflito.

Israel persistia naquela guerra ensandecida dizendo que iria exterminar os terroristas do Hamas. E os pobres palestinos não tinham outra pátria para se mudar.

Aqui dentro de nossas fronteiras não havia jeito de erradicar a corrupção.  Políticos ambiciosos levam polpudas somas de dinheiro em suas cuecas. Dizendo: “isso não é meu!”

Todos os tipos de maracutaias eram feitas à mercê da impunidade.  E quem dizia que iria punir adeus cadeia. Aqueles de colarinhos brancos e engomados zombam das leis. E quem paga cadeia são aqueles pobres ladrõezinhos pés de chinelo.  Que furtam as penosas para matar a fome dos filhotinhos. E não têm como se livrar da borduna do guarda.

Naquela hora madrugada Chico da dona Aninha acordou à hora costumeira.

Mal teve tempo para dormir. No dia de ontem uma trabalheira o fez cair na cama sem sequer ir ao chuveiro. Dona Ana, também conhecida pelo diminutivo, por seu tamainho diminuto. Nem se queixou daquele odor de sovaco vencido. E ela amava seu marido. Como era extremamente devotada a sua família. Aos seus dez filhos. Uma escadinha que começava no Pedrinho. Seguia pela Alice. E ia adiante até chegar aquela bebezinha de colo nascida no derradeiro dezembro.

Era um pelos dez rebentos. Chico ajudava no que podia no cuidar dos filhos.  Era um pai extremado. Zeloso de sua prole. Embora dois deles fossem adotados ainda novinhos.

Chico amanhecia antes das quatro da madruga já no curral. Umas vaquinhas tatus com cobra já o esperavam famintas com o leite derramando de suas tetas. A produção era suficiente para alimentar suas crias. Os bezerrinhos ficavam com fome.

Uma vez terminada a ordenha Chico ia tomar seu cafezinho magro.  Não teve como tomar antes.  Aninha, naquela hora madrugada, acabava de trocar as fraldas das menorzinhas. Chiquinha chorava no seu bercinho enquanto a lindinha da Alice dormia um soninho bem saboroso.

Chico, já antes das nove, já estava em outra ocupação. A porcada faminta grunhia de fome no enlameado mangueiro. Ali tinha espaço bem maior do que no chiqueiro. Onde os porcos tinham como se lambuzar naquele barro viscoso.

A pastaria tinha de ser roçada. Um capinzal apetitoso era fonte de alimentação das vacas.

Chico não tinha parança. Desdobrava-se em mais de mil sendo apenas um.

À hora do almoço tirava um cochilo. Que durava alguns minutos apenas. A sua filhinha mais nova, no seu colo, fechava os olhinhos de sono.

Mas Chico não tinha tempo para o desfrute. Antes da uma da tarde já estava de enxada em punho. Com ela limpava o rego d’água. Um corguinho de águas límpidas tocava um carneiro. Que fazia tlec tlec levando água limpa até a caixa d’água por cima da laje da casa.

Lá pelas três da tarde Chico voltava ao curral. Era a segunda tirada de leite do dia. Cochos cheios de milho picado satisfaziam a fome da vacada.

Antes da cinco da tarde Chico tirava um tempinho pra ir à cidade. Montando a velha mula branca uma hora depois já estava de volta. Ainda lhe sobravam uma penca de coisas a fazer.

Era hora da janta quando o visitei. Por volta da volta das seis da tarde.

Dona Aninha já estava com comida prontinha. Com seus filhos ao derredor de uma mesona enorme.

Assentei-me ao lado do amigo Chico. Foi ele quem fez uma breve oração em agradecimento pela comida que nos foi servida e pela família que ajudou a construir.

Já era quase noite quando me despedi.

Comentei sobre os fatos da atualidade. Sobre a eleição de um novo Sumo Pontífice. Sobre aquele conclave que estava por escolher o novo Papa.  A guerra entre a Ucrânia e a Rússia não dava sinais de terminar.  Israel ainda tinha a intenção de exterminar os terroristas do Hamas. O presidente norte americano, cujo instinto belicoso se mostrava a olhos vistos, ameaçava a paz no mundo inteiro.

Chico, mostrando insatisfação com minha prosa ruim, simplesmente me disse: “e eu com isso. Tenho mais que trabalhar e cuidar de minha família que precisa de mim. O resto que se dane.”

Deixei aquela linda família pensando no dito do Chico.  Não é que ele está coberto de razão?

 

 

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