Aprendi muito com aquele cãozinho andarilho

Como já disse, e reedito o dito, por vezes me dá uma vontade imensa de caminhar pelas estradas. Não no asfalto negro e sim pelo acostamento. Muito embora em seu lugar apenas exista um matagal denso onde os carros não podem parar. Quando deveriam ter um lugar seguro para uma emergência qualquer inesperada. Como um desconhecido andarilho. Sem lenço ou nenhum documento que ateste a sua verdadeira identidade. Já que a ele importa somente e inconsequentemente andar sem pressa pelas estradas. Sem rumo e sem prumo. Sem a nossa preocupação cotidiana de saldar aquele ou aqueloutro boleto já vencido.  E ele convencido do que conta é ir adiante. Por vezes retrocede. Pára para um breve descanso. E dorme sossegado ao relento. Sob o teto de estrelas e da lua feericamente iluminada. Cenário idílico para um casal que se ama possa deitar na relva molhada a fim de se amarem tresloucadamente. Pois eles pensam que o mundo a eles apenas pertence. Isso seria o ideal se não fosse diferente do real.

Ontem, a caminho da casa dos meus netinhos Theo e Dom, já que o Gael mora em outra morada. Uns quilômetros em retrocesso. A caminho de minha rocinha encantada. E no sábado passado tive o prazer de vê-lo ali. Se bem que por breves minutos na intenção de degustar mais um churrasco caprichosamente feito pelo amigo Marcelo da dona Rose. Com a ajuda imprescindível de minha Rosa.

E, naquela rodovia descuidada e cheia de buracos ainda sendo recapeados. Na pista da direita quase atropelei um cãozinho que ia caminhando como um andarilho. Levado por nenhures a lugar algum. Sem bagagem nas costinhas magricelas. Possivelmente faminto. A espera de um lar que o adote. Mas ele, pela sua carinha desconsolada não tinha pretensão nenhuma de encontrar um novo lar.

Foi quando imaginei de onde teria vindo o tal cãozinho sem estirpe ou pedigree. Mais um viralatinha nascido sem intenção de ser posto ao mundo por uma mãe cadela que por certo se cruzou com muitos outros cães. Pois cadelas no cio aceitam a monta de qualquer canídeo que ouse cheirar aquele odor forte exalado por sua vagina sempre aberta ao coito.

E eu, que tanto amo aos cães, na minha roça a esta hora devem estar ronronando. De barrigas cheias o Clo e o Robson. Sinto pena deles por não poder ainda deixá-los livres pois eles ainda são meninos. E podem se evadir daquele ambiente tão lindo e cercado de verde e das águas ainda turvas e amarronzadas da represa do Funil. Pretendo, assim que eles dois se tornarem adultos responsáveis como eu nunca fui. Pois, apesar de meus setenta de tres anos penso ser criança. Não apenas e tão somente pelas atitudes infantis assim como meu tamainho pouco espichado. Deixá-los como verdadeiros vigilantes do meu paraíso sempre inacabado. Soltos a correrem livres pelas pradarias. Se eles porventura decidirem se comportar como aquele viralatinha o qual quase foi sacrificado debaixo das rodas da minha Orock. Não sei se irei permitir. Pois no meu coração de pai e avô o elo que me prende aos entes queridos são inafiançáveis e indissolúveis.

Naquela hora tardia. Ao chegar nas vizinhanças do cruzamento que leva ao condomínio Montserrat. Quando acabei estacionando meu veículo à beira da estrada. Uma artéria perigosa de muito tráfego e de um piso asfáltico mais parecido a lua com suas enormes crateras.

Tive a curiosidade de um escritor à caça de histórias.

Depois de oferecer um naco de carne de primeira ao cãozinho andarilho. E ele aceitou a minha proposta de me contar parte de sua vida. Não sei se aquilo poderia se chamar de vida.

Pois o tal cãozinho, desde que nasceu num monte de lixo, em conjunto com mais seis ou sete irmãozinhos todos eles famintos e carentes de uma mãe mais compreensiva. Que a eles oferecesse não apenas o leite que saía em pingos de suas tetas. Já que a cadela recém parida também foi nascida do mesmo jeito. E nunca experimentou o achego de um lar de verdade.

Acabou dando à luz nas trevas de um buraco escuro. À beira daquela mesma estrada.

Em nossa conversa rápida à beira do caminho. Por onde passam caminhões e carros em máxima e reduzida velocidade.

Tive a audácia e a cara de pau de saber um cadinho da vida errante daquele animalzinho de quatro patas e um focinho frio como os dias de inverno que elezinho iria decerto enfrentar.

“Meu amiguinho cãozinho. Pra onde vais? Tens fome? Já se alimentou no dia de hoje? E como foi seu ontem? Já esteve doente? Teve, por acaso dor de dente? Tu nasceste em lar desestruturado? Conheceste seu provável pai? Ou nunca? Sabes por onde andas seus irmãos? E sua mãe genética? Por um acaso do descaso conheces seu destino? Sabes se ela está viva? E qual o seu destino”?

Elezinho. Demonstrando uma certa impaciência abanou o seu rabinho cotó e latiu um latidinho desconsolado.

“Não me leves a mal, meu caro doutor. Desde nascido sou mais um cão andarilho. Dou uma paradinha aqui. Outra acolá. Suplicando por ração. Que seja um resto de comida sobra dos pratos dos humanos. Se não me dão escorraçam-me como se eu fosse um bandido ou se eu tivesse raiva ou cinomose. E meu único pecado, se é que os tenho, é ser sem raça. Como se viralatar pelas ruas. Procurar em sacos de lixo restos de comida fosse um ato de terrorismo.

Meu único defeito. Eximo-me de tal culpa. É nunca ter experimentado o abraço de uma criança ou o carinho afetuoso de um adulto. E como amo os idosos. Meu sonho é morar numa casa deles e deles cuidar com o maior carinho e desvelo. Afinal. Não perca tempo comigo. Vou continuar andarilho pelas estradas afora. Até que a morte me venha abraçar debaixo das rodas de um carro ou veículo pesado. Adeus. Não vou dizer até breve. Melhor que morte nos separe. Torço para que ela venha logo”.

Naquele curto interregno aprendi muito mais que aprendo com os de minha raça.

 

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