Tem coisa pior?

E muito…

Só quem não conheceu a fome. A miséria. A pobreza extrema. As doenças incuráveis e irremediáveis. As deficiências com que nasceram os pobrezinhos cujos pais os renegaram. Sabem como ninguém aquilatar entre o menos ruim e o pior.

Eu nasci com a bunda virada pro sol e de bem com a lua.

Nada me tem faltado desde quando nasci.

Fui uma criança esperta. Ainda me lembro daquela cena. Eu, pelado no galinheiro. Naquela Boa Esperança onde nasci. Dando milho as galinhas branquinhas. Sob olhares gulosos de um galo enorme. De olho na minhoquinha que entre minhas perninhas brancas tentava se esconder. Quando quase perdi minha fimose bem ao estilo de bico de lamparina. E aquela pelinha que antes recobria meu piu piu estava prestes a ser bicada e digerida por inteiro no papo daquele galo papudo. Tido como o terror do galinheiro telado. Ensombrado por uma cerca viva parece ter sido um amontoado de beijinhos.

Uma vez de malas prontas aqui pra Lavras as coisas continuaram benéficas para a minha pessoinha. Naquela velha casa. Hoje reduzida a pó de lembranças, continuava nada a me faltar. Na escola assentava-me à primeira carteira. Na fila do gargarejo. Sempre atento ao que a professora ensinava. No entanto, para não perder o encanto. De vez em quando virava minha cabecinha em direção à carteira de trás. Não na intenção de pegar cola com aquela meninazinha caxias. Tida como CDF por todos os nossos coleguinhas. Não era em direção aos seus olhinhos claros que tinha o costume de admirar. E sim meus olhares iam direto a sua calcinha feita de rendas branquinhas. Por sorte minha uma vez a pilhei sem a calcinha. E ela, meio avexada e com um belo sorriso na face acabou me intimando a ir ao cinema em sua companhia. Desde que eu, com uma boa mesada, a fama de riquinho não fazia jus ao Paulinho menino. A ela pagasse o ingresso e comprasse um balde de pipoca e uma sukita amarelinha.

E assim, com estes passos não mais titubeantes. Agora sabedores pra onde desejaria ir.

A vida sempre me presenteou com os melhores brinquedos. Aquele caminhãozinho de madeira. Comprado aos detentos da cadeia. De tão velho e gasto foi doado a um amiguinho da rua do Cascalho. Rua esta vizinha a minha casa. A da Costa Pereira número 152.

Uma vez em idade de começar a vida. Com meus próprios rendimentos comprei um lote imenso no bairro Centenário. Era ali que acompanhava os trabalhos dos mestres de obra a edificarem aquela casa grande. Passava horas perdidas catando pregos extraviados pelo assoalho de tábuas corridas feitas de madeira ipê.

O trabalho nunca me meteu medo. Como tenho verdadeiro pavor das noites escuras. Dai o meu costume costumeiro de acordar sempre em plena madrugada. Ir de mansinho ao banheiro para exonerar meus intestinos. Passar uma água fria na minha cara envelhecida. Molhar o resto dos meus cabelos brancos nas têmporas. E sair do meu apartamento com as ruas ainda vazias de pessoa e cheinhas de inspiração.

Agora, aos mais de setenta, contabilizo três no pós setenta, ainda sabendo que a roça talvez seja o meu porvir.

Ainda em plena madrugada me conecto a internet. Me plugo ao admin para ver. Pelas três câmeras, o que se passa na minha casa beira lago. E como me apraz ver aquela visão paradisíaca. Passeio meus olhos pelo salão e pela piscina de águas azuis e transparentes como a alma do cronista que sou.  E volto meus olhares inquiridores em direção à varanda imensa que rodeia a casa de cima. E, pela derradeira câmera dou uma voltinha pelo corredor da parte de trás da casa.

Bem sei que esta chuva incessante tem passado dos limites suportáveis.

Hoje amanheceu um dia presumivelmente de sol. Agora ele brilha meio tímido por entres as pás das minhas persianas. Não sei até quando esse sol vai continuar a brilhar por quanto tempo mais.

Oxalá por todo esse dia vinte e cinco de janeiro.

Bem sei que chuva demasiada tem suas desvantagens. As estradas ficam intransitáveis. O barro faz os cascos das vacas adoecerem. A produção leiteira tem dificuldades de escoar. O caminhão leiteiro não consegue galgar o morro agudo. E o pobre produtor de leite tem de usar seu trator para rebocar o caminhão atolado na lama escorregadia do lugar. Sem nenhum pago adicional que não seja um muito obrigado mesmo.

Numa manhã extremamente chuviscosa. Como tem sido há meses e meses antes. Deparei-me com o Seu Tião atolado até os chifres que não tinha. No meio do morro topetudo. Em seu trator mais velho que a serra alta que daqui se avista de corpo inteiro do meu lado direito. Tentando rebocar o vetusto caminhão leiteiro.

Pelos seus ares de fadiga intensa parecia que ele lá estava desde a noite passada em claro. Embora fosse uma noite escura e chuvosa.

E eu não tinha como ajudá-lo. Pois a minha Orock não era de tração quatro por quatro.

Parei um cadiquinho naquela velha estrada enlameada. E entabulamos um dedal de prosa.

“Ei. Amigo Tião. Como ta tu? Mió ou menas ruim? Tá pricisano de ajuda? Ou dá conta de sair dessa lameira sozinho? E tem coisa pió que agarra no barro”?

E ele me arrespondeu marcriado e fulo da fuça: “tem sim. Ficá, nesse apertume de trabaio escutando besteiras saídas de sua bocona cuspideira. Vê se te oia no espeio bocarroto. Suma na braquiária”!

Tem coisa pior não. Ficar escutando impropérios saídos da bocona de mal educados quando a gente tem apenas e tão somente intenção de ajudar.

 

 

 

 

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