Ontem uma lufada de infância entrou-me porta adentro

Tantas vezes tentei fazer voltar a meninice escondidinha dentro do meu eu.

Sonhava com aquela mesma rua. Que daqui se avista, pelos fundilhos.

A casa onde cresci agora dela só restam doces recordações. Um tapume, quem desce por aquela rua, tolhe-nos a visão lá de dentro.

Aquela casa, parede com parede com a de um tio querido, irmão de minha saudosa mãezinha, hoje só existe nas minhas lembranças. Ali fui criança. O primogênito do meu avô que me emprestou o sobrenome Rodarte.

Aquele velhinho simpático, andejo, sempre trajando um terninho de cor azul marinho, com listras de giz brancas, meio encardidas, a calça do mesmo tecido suspensa por um suspensório que ia por cima de uma camisa de manga comprida, nos pés cheios de calos, imagino por ele andar tanto pela cidade, uma sandália de couro amarronzada, nunca o percebi usando tênis. como eu sempre dele utilizo, pois ando tal e qual elezinho. O querido baixinho avô Rodartino Rodarte, o qual deixou seu nome primeiro a um primo, meio que irmão, hábil e competente cirurgião vascular, ele mesmo, conhecido e reconhecido por Neto, tenho por ele grande e inconteste admiração.

Foi ele mesmo, em tempos que já se foram, meu auxiliar durante a operação feita em meu saudoso pai, durante uma cirurgia da qual me lembro, mãos trêmulas de emoção, quando tive de livrá-lo daquela glândula que cresce na idade provecta, e dificulta a micção.

Na tenrice da minha meninice, anos se foram, mas as recordações continuam a enfeitar-me a vida, tinha um cãozinho peludo, de nome Rebel. Foi ele, com sua valentia e destemor, que me salvou das mordidas doidas de um canzarrão feioso, que, de uma hora pra outra apareceu, naquela Costa Pereira, que agora se mostra em novas roupagens, quase nada resta daquele passado que já avoou pra outros céus.

Eu era feliz e bem no sabia. Não haviam celulares naqueles idos anos de minha infância perdida. Muito menos tablets. Nem ao menos Netflix. E os desenhos animados falavam outras linguagens.

Os brinquedos eram distintos. As bolinhas de gude. O jogo de finca e bete. O pular amarelinha. O roda roda pião.  O pique esconde. O se puder me alcança. Quem peidar primeiro cheira o pum que fedeu no ar.

Nós, meninos de antão, aqueles mais desenvoltinhos, sabidinhos, olhávamos aquelas meninazinhas com olhos desmaliliciosos, dizíamos que ela não usava calcinha. Sem sequer saber que, por baixo daquela sainha rodada moravam anáguas e espartilhos, suspensórios e calcinhas coloridas, que tentavam empanar o brilho daquele apetrecho que só mais tarde era doado ao verdadeiro amor de sua vida. Mesmo assim só depois do casamento. O qual, via de sempre, durava em verdade até que a morte os separasse.  E os anjos dissessem amém.

Sempre quis ter em mãos a tal máquina do tempo. Aquele invento que nunca me saiu do pensamento. Entrar pelo túnel do tempo. E me reportar aos anos de antigamente.

Não conseguindo tamanha proeza quem diz que eu desistia?

Aos setenta e alguns anos a mais, quando alguém me pergunta quantos anos eu tenho, respondo num átimo: “apenas um. De idade conto com setenta e dois”. O outro anus é o tal orifício por onde enfio meu dedo indicador. No tal toque sem retoque. Que não dura mais que um segundo. Não dói nem tira pedaço. E se torna, cada vez mais, fundamental para o diagnóstico precoce do câncer de próstata.

Nesta tentativa inglória de retornar a minha meninice peralta, vãs, todas elas, ontem, já era quase o despertar de uma noite alta, atendi a uma chamada de celular de minha filha mais nova.

“Pai, o senhor pode ficar com seus dois netinhos? Daniel e eu temos de nos ausentar. Theo e Dom não têm com quem ficar. É só um minutinho. Logo os trago de volta. Por favor. Me ajude!”

Não tive como dizer não. Apesar do sono já instalado, da novela das nove quase começar, naquele instante a porta se abriu. Estrepitosamente fez PUM. Com sonoro estardalhaço.

Os dois pestinhas entraram porta adentro tal e qual furacõezinhos moleques. Só não quebraram a louça de cristal da minha mulher, por falta de tempo.

Intrometidozinhos apossaram-se do meu celular. Uma vez na minha cama, de casal, ali fizeram uma barraca. Que serviu de esconderijo, como seu avozinho usava nos velhos tempos daquela mesma rua. Nos fundos dela. A rua Horácio de Carvalho. Onde reside uma senhora linda. Companheira de academia. No LTC.

Fizeram-nos, minha esposa e eu, de gato e sapato de sola furada. Sem chance de ser remendado ou remediado.

Horas passearam. E elezinhos não partiam da minha morada.

Já estávamos quase mortos vivos, quando, finalmente, o pai deles buzinou lá em baixo. Ufa. Não UFLA. Enfim ambos se foram. Espero pra voltar dentro em breve.

Agora, neste dia lindo de inverno, temperatura em ascensão, lembro-me, já saudoso, dos meus dois netinhos, cada um mais peralta que o outro. Falta-me a peraltice inteligente do querido Gael. Sinto como se uma lufada fresca de infância me entrasse alma adentro.

Ai que saudade daquele que um dia fui. Na companhia dos meus saudosos pais.

 

 

 

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