Sou uma mistura dos Abreus com os Rodartes

Todo mundo nasce da conjunção de dois genes.

Antes o comum era ser filho de um homem com uma mulher.

Sexo masculino era dominante. As fêmeas só serviam para reproduzir. Lavar roupa. Cozinhar. Cuidar da casa, sendo chamada rainha do lar.

Hoje os papéis se inverteram. Homens não mais são feitos à moda antiga. Eles também cozinham como poucos. Lavam a louça, esperam pacienciosamente  a mulher em casa. Trocam as fraldas dos recém nascidos, da mesma forma são mais comportados.  A última palavra não sai de nossa boca. Quem manda e comanda não são mais os maridos.  São elas que nos dominam. E ai da gente se levantamos a voz! Somos porta-vozes ocos. [

E, se por um descuido nos atrasamos, de prosa num bar qualquer, o telefone andejo logo nos diz: “onde você está? Volte logo que tem muita roupa pra lavar”.

E retornamos à casa de rabinho abanando. Como um cachorrinho sem dono. Igualzinho aquele, que nesta manhã fria, à porta do meu apartamento, saudou-me com um afável “au au”.

Desde quando me entendo por gente, nos idos anos de antigamente, na pia batismal, fui batizado com dois sobrenomes.

Abreu por parte de pai. Rodarte por interferência de minha mãezinha.

Foi naquela casa, que daqui se avistava, olhos recheados de saudades, onde compreendi o quanto faz falta a figura dos nossos antecessores.

Hoje as duas moradas estão reduzidas a dois lotes vazios. Cheios de nostalgia de quando ali morava.

No lote de cima viviam meus queridos pais. Ombreada, lado a lado, morava um tio meu.

Cresci num convívio fraterno com ambos os lados.

Naqueles saudosos anos tinha um cachorrinho negro, peludo, de nome Rebel. Foi ele quem me salvou de um canzarrão inamistoso. E o valente Rebel perdeu a vida na tentativa inglória de salvar a minha.

Foram-se os anos. Bateu asas o tempo.

O meu primeiro sobrenome ainda o carrego com destemido orgulho. O derradeiro, Abreu, me lembra aquele gerente de banco. Compenetrado em seu oficio. Que, uma vez aposentado, por não gostar de ficar jubilado, gradou-se em advocacia. A exemplo de um filho meu.

Foi ele quem me disse, e eu sigo seus ensinamentos: “nunca pare, meu filho, o ócio é o começo do fim”.

Em verdade tento seguir seu caminho. Nunca irei parar de escrever. Não naquela Facit. A velha máquina de escrever. Que hoje repousa, suas teclas tiquetaqueantes, num quartinho da minha casa na roça, olhando a represa do Funil com olhos marejados de saudades.

Sou uma mistura em carne e osso dos Abreus com os Rodartes.

E como me lembro do meu avô Rodartino. Que deu nome àquele edifício daquela rua Costa Pereira, vizinho da mesma caixa d’água, que daqui se permite ver pelos fundos.

E como ele andava. Com seu terninho azul, com riscas de giz. As calças eram suspensas por um par de suspensórios. Nos pés desnudos uma sandália de couro marrom.

Minha vozinha Belica cultivava rosas amarelas no seu jardim suspenso. Nos fundos daquela morada existia um pé de jabuticaba. Onde nós, netos, nos reuníamos, e deliciávamos com aquelas frutinhas doces, como o beijo de minha mãezinha querida.

Do outro lado, dos Abreus, oriundos de Portugal, lusitanos sem sotaque, meu avô Alberto, consorciado com outra avozinha, avó Maria, deu-me de presente cinco tios. Listo todos, a seguir: tio Bento, o mais longevo, mascate viageiro, emigrou ao Paraná. Tio Chico Abreu, o galã da família, não se deu como fazendeiro. Teve duas grandes propriedades. Que depois foram negociadas. O meu tio Albertinho foi o que atingiu mais idade. Ele nos deixou a poucos anos atrás. Tia Liquinha, que morava em Varginha, deixou no seu rastro cinco lindas meninas e apenas um varão. Tio Zito Abreu, este sim. Foi fazendeiro até o fim. Ainda me lembro dos seus causos no rabo do fogão a lenha, na fazenda das Três Barras, berço esplêndido de quase todos os Abreus.

Já os Rodartes ocuparam quase toda aquela rua.  Rua de tantas lembranças que nunca irão ser esquecidas enquanto eu estiver por aqui.

Tio Chico Rodarte, causídico de causas nunca perdidas, militava na advocacia sem nunca se preocupar com os honorários. Morreu sem deixar como legado a fortuna. E sim a ética e decência ímpar. Admirado por todos que o conheceram.

Tio Rui, pai do Pedro, do Luís Carlos, primos queridos, amava caminhar por São Paulo, admirando aqueles prédios altos, tabelião que deixou como legado o seu cartório ao não menos competente primo Luís.

Tia Cida é um capítulo a parte. Valente, ela ainda sobrevive. A tantas e quantas adversidades que teve de enfrentar, denodadamente, na sua vida que não tem hora de terminar. Mestra em ensinar. Dotada de uma capacidade de se lembrar de todos aqueles que foram seus alunos. Os quais tem por ela verdadeira adoração. Tio Rubio, tio Binho, o mais jovem da prole do meu avô Rodartino, de pouco malhava comigo na mesma academia. Já hoje se mudou para Brasília. De vez em quando aparece. Vem e desaparece num átimo. Deixando saudades com a sua presença extremamente simpática.

Minha querida mãe, caso ainda vivesse, completaria um centenário neste sete de junho passado.

Sou, com muito orgulho, uma misturinha inexpressiva dos Abreus com os Rodartes.

Espero continuar, nestes anos que me restam, a escrevinhar toda a saga de nossa familia. Enquanto minha capacidade de anotar, nas entrelinhas, tudo aquilo que passou. E, infelizmente, não volta mais…

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