Nuvens negras

Aquela noite choveu um bom bocado na roça do menino Antonino.

Do lado de fora da janela se podia ver água descer do céu em intensidade máxima.

Nenhures do sol se abrir. Ele estava encoberto por nuvens escuras. O cinza predominava naquela madrugada.

Antonino, garoto inteligente, tinha um sonho.

Embora amasse aquela rocinha para ele chamada de Paraiso sua ambição era outra.

Um dia teria de se mudar pra cidade. A sua intenção de se tornar médico crepitava dentro da sua cabecinha cheia de sonhos pueris.

Era filho único. Nascido há exatos dez anos atrás. Vivia ao lado dos pais. Aos quais amava acima de tudo.

Estudou, no primeiro grau, numa escolinha que depois se mudou para cidade perto. Mesmo assim Antonino acordava cedo, tomava a lotação que não descia o morro agudo, por causa do barro que enlameava a estrada, e, cheio de intenções boas chegava à escola antes do começo das aulas do dia. Ali esperava até às sete da manhã. Era aluno aplicado. Elogiado pelas professoras.

Infelizmente o estudo que aquela escola oferecia não era o bastante para que ele um dia fosse vitorioso na pretensão que desfrutava. Ser médico era tudo que Antonino queria.

Aos quinze anos resolveu se mudar para uma cidade grande.

Na capital do seu estado morava um tio por parte do pai. Foi com um grande aperto no peito que se despediu da família. Era a primeira vez que isso acontecia.

Assim que desceu do ônibus Antonino teve a primeira desilusão na cidade grande.

Um grupelho de rapazolas mal encarados acabou levando toda a sua bagagem. De repente se viu desprovido de tudo que possuía. Inclusive todas as economias que trazia numa carteira parcialmente escondida no bolso de trás da calça.

Por sorte o tio estava em casa assim que o pobre Antonino bateu em sua porta. Naquela noite escura o rapaz sonhou com a profissão que elegera como parte integrante de seu futuro.

A medicina era tudo que sonhara.

Não foram fáceis aqueles primeiros anos naquela cidade desconhecida. Foi matriculado numa escola do estado. Não podia pagar uma melhor. Mesmo assim perseverava em seu sonho de um dia se tornar profissional da saúde.

Enfim chegou o dia de se inscrever na prova do ENEM. A concorrência era ferrenha. Com ele disputavam outros garotos mais preparados. Quase todos oriundos de boas escolas. Nascidos na cidade grande.

Depois de varar noites insones, estudando com afinco, Antonino não foi bem na primeira tentativa. Mas perseverou. Na segunda tentativa conseguiu afinal seu intento.

Foi matriculado na tão sonhada escola de medicina aos vinte anos.

A partir de então tudo o bom moço via seu sonho se transformar em realidade.

Durante os três primeiros anos Antonino, cada vez mais apaixonado pela profissão, era considerado por todos um aluno exemplar. Dedicado, estudioso, passava o dia inteiro debruçado aos livros.

Graduou-se em medicina aos vinte e cinco anos. Mas alguma coisa faltava em sua formação profissional.

Antonino queria ir mais além. Desde o primeiro ano da faculdade, entre os cadáveres na aula de anatomia, dissecar corpos, escrutinar-lhes as entranhas, era da sua predileção maior.

Ser cirurgião era seu sonho. Mais três longos anos de estudos ainda faltavam para completar sua ambição maior.

No entanto Antonino tinha de trabalhar. Desdobrava-se entre três plantões em hospitais desapetrechados de recursos. Ali atendia todos os casos que apareciam. Desde consultas banais até mesmo acidentados graves.

Um dia, numa noite escura, doutor Antonino foi acordado para atender um acidentado grave.

O rapaz, um motoboy, havia sido atropelado por um caminhão desgovernado. Era um politraumatizado grave. Que sofreu, além de traumatismo craniano, uma ruptura de baço.

Antonino, responsável pelo plantão, depois de fazer os exames para comprovação do diagnóstico, levou o paciente a sala de cirurgia.

Foram mais de três horas de operação. Sem assistência de um especialista o pobre rapaz perdeu a vida.

A família, aflita, na sala de espera, veio a responsabilizar o pobre médico, ainda inexperiente, pelo infausto ocorrido.

Antonino nunca mais foi o mesmo desde então. Teve de abortar o sonho de se tornar cirurgião. Foi processado. Teve o diploma cassado.

E ainda por cima, como se não bastasse tamanha desdita, foi penalizado com uma soma considerável. Teve de reembolsar a família com mais de cem salários mínimos. Muito mais que percebia durante dez anos naquele hospital de periferia.

Antes de completar trinta anos Antonino viu seu sonho desfeito. Nuvens escuras pairavam sobre ele.

Infelizmente é isso que acontece pelo país afora.

A medicina exige muito da gente. Pena que a mídia tenta denegrir a nossa imagem. Não somos responsáveis pelas falhas do sistema. Não nos joguem às costas culpa maior que não temos.

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