Amara desilusão

O sonho daquele menino, nascido numa favela esquecida no alto do morro, era cuidar das pessoas, tantas que via sofrendo as desventuras de terem nascido naquele lugar desprovido de recursos, desassistidas pela sorte, sem atendimento médico condizente as suas situações de miseráveis.

Juninho, nascido de pais desconhecidos, era um bom aluno naquela escolinha do morro.

Sempre comparecia às aulas com pontualidade invejável. Não era o que acontecia aos demais colegas. Garotos que não tinham consciência da importância dos estudos para se tornarem pessoas de bem.

Por este motivo sofria na pele escura todas as ofensas as quais não merecia. Era taxado de caxias, menino cuja conduta destoava do resto da classe.

Aos quinze anos teve a primeira experiência com o submundo das drogas. Por não concordar em fazer parte de uma gang de garotos que compartilhavam do vício acabou levando uma surra dos traficantes. Que lhe deixou marcas até nos dias de hoje.

Mesmo sofrendo toda a sorte de maus tratos perseverou em seu caminho de bom aluno.

Quase concluindo o segundo grau foi aprovado com notas máximas no exame do Enem.

Escolheu uma faculdade pública. Era o curso com que sempre sonhou.  Afinal, pensava ele, seria, ao cabo de mais alguns anos um médico dedicado, que gostaria de trabalhar ali mesmo, num hospital recém-inaugurado, pertinho do barraco onde morava.

Foram seis anos de dedicação constante. Graduou-se em medicina com apenas vinte e quatro anos.

Mas, Juninho gostaria de ir mais adiante. Quem sabe tornar-se cirurgião geral, ou outra especialidade cirúrgica, pois, durante o curso de anatomia amava dissecar cadáveres, expor-lhes as entranhas, e depois fechar aquelas peles de onde exalava cheiro de formol.

Dito e conseguido. Depois de receber o diploma de médico Juninho continuou a estudar. Varava noites grudado nos livros. E depois de uma prova feita no final do ano, com lágrimas nos olhos leu seu nome entre os aprovados.

O doutor Júnior da Conceição ficou em primeiro lugar entre os candidatos a residência de cirurgia geral.

No primeiro dia de plantão, num hospital de bom conceito, o médico novato se viu em dificuldades. No meio da madrugada a ambulância com a sirene ligada depositou na sala de espera um acidentado grave.

Durante os seis anos de faculdade Juninho jamais teve em suas mãos um caso de tamanha responsabilidade. Era de extrema urgência o atendimento. Com as mãos trêmulas de emoção o jovem médico levou o paciente ao centro cirúrgico.

Mas foram debaldes todas as tentativas de reanimação do infeliz acidentado. Ele acabou falecendo ali mesmo. Na mesma maca em que entrou no pronto atendimento.

Doutor Juninho não se acabrunhou. Passou noites lamentando o infausto acontecido. Aprendeu, naquela noite fatídica, que cada um de nós tem traçado o destino. E quando a morte chega nada a fazer para protelar a hora.

Depois de cinco anos aperfeiçoando-se em cirurgia geral, de ter participado de um sem número de operações, afinal doutor Júnior da Conceição sentiu-se habilitado a voar sozinho.

Foi aprovado em primeiro lugar para aquele mesmo hospital onde sempre quis trabalhar. Ali era conhecido, amado, seu passado humilde sempre fez parte daquela favela miserável, onde quando chegava um médico o mesmo era saudado com tiros pro alto.

Doutor Júnior da Conceição sentiu-se enfim realizado. A vida pra ele sorria. Seu sonho desde menino parecia tomar cor.

Duas semanas se passaram. Juninho quase morava dentro daquele hospital. Não tinha tempo pra nada. O salário era suficiente para que ele conseguisse morar numa casa confortável. Mas não fazia parte dos planos do jovem cirurgião geral.

Numa noite, da qual nunca mais vai esquecer, era alta madrugada, foi trazido por alguns comparsas um criminoso velho conhecido nos arrabaldes.

Ele havia sido baleado durante um assalto. Era uma perfuração no abdome inferior, por onde sangrava abundantemente.

Durante a operação, bem sucedida, na qual foi feita uma colostomia salvadora, quando doutor Júnior da Conceição foi ao quarto, descansar, ouviu-se um tiroteio na porta do hospital.

Outros estampidos se ouviram a seguir. Uma turba com olhares de ódio invadiu o hospital. Fizeram de reféns as pobres enfermeiras. Foi quando Doutor Júnior acordou.

Bastante assustado, depois de uma noite passada em claro, os meliantes tomaram conta de todas as dependências daquele hospital. Juninho tentou esconder-se na sala de parto.

Foi quando a polícia interveio. Durante o tiroteio acabaram morrendo pessoas inocentes. Entre os quais uma enfermeira amiga desde a infância do jovem profissional.

Durante o velório de mais de dez funcionários, por sorte o jovem doutor escapou ileso do enfrentamento, o que se viu foi puro desencanto.

Este é o cenário, infelizmente, do que acontece dia após dia. Não apenas naquela favela. Como também nos distintos rincões de nosso país.

Doutor Júnior da Conceição nunca mais foi o mesmo. Apesar de amar a sua profissão, viver por ela, a partir daquele dia acabou sofrendo na pele uma amara e doída desilusão.

Hoje é dezoito de outubro – dia do médico. Não temos motivo para comemorar.

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