Eram dois irmãos e uma rocinha encantada. De tão pobrinha e pequena que, quando a vaca deitava o rabo ficava de fora da cerca do arame farpado, mourões de tão velhos que os cupins a eles evitavam.
O trabalho duro não lhes metia medo. A doença sim, aterrorizava-os.
O tal pedaço de pasto sujo ficava fincado num lugarejo esquecido de todos. Menos do pároco celebrante, um ex-seminarista praticante, que nunca deixou a batina embora a santa igreja a tivesse banido de dentro dela há anos nos costados.
O nome do tal lugarejo era Capoeirinha, “pertin” de Trumbuco, a caminho de Santana da “Varge” (segundo suas próprias linguagens).
Para chegar até lá carecia de algumas baldeações, sem baldes, debalde, dizia o mais novo, com cara de saudável, embora fosse por demais adoentado. Sem que o soubesse o quanto.
Nande era o nome do mais jovem. Contava ele com quarenta e poucos mais. Conquanto parecesse mais de oitenta. O segundo, não existia o terceiro, pois ele foi natimorto, epitetado de Dedé, roliço como um capado obeso, ria até da feiura dele mesmo. Diziam, nos arrabaldes do Trumbuco, comunidade chamada de Capoeirinha, que quando Dedé olhava a cara do espelho ele trincava logo, com medo da careta. Que não era nada mais, nada demais, que a própria carantonha horrorosa do capiau, que, quando uma mulher, coisa rara na roça, olhava para ele pensava logo em mula- sem- cabeça, assombração perneta, ou coisa ainda pior. Valha-nos Satanás!
A panha de café anunciava-se como a florada dos ipês. O tempo estava ressequido, poeira alçava-se no ar.
Levas e levas de gente, tezes tostadas pelo sol quente, iam e voltavam do cafezal lotando a caçamba desprotegida do velho caminhão leiteiro, transformado em ônibus cafezeiro, à última hora. Já que o dono da fazendola, prestes a perder a propriedade penhorada a um banco sanguessuga, não tinha como pagar o aluguel de um transporte digno de levar vidas humanas à panha de café.
A safra era a derradeira esperança da dupla de irmãos tirar a despensa do vazio. Antes dela apenas ratazanas magricelas davam o ar de suas desgraças. A trempe do fogão a lenha tiritava de infelicidade. Nada fumegava por cima das achas de lenhas ao rubro. As panelas nada exibiam por dentro de suas barrigas luzidias.
Dois dias antes de começar a correria dos balaios, a azáfama das cabeças “achapeladas”, a esperança de novo brotar daquelas mentes criativas e de pouca instrução, felizmente, pensavam todos, que um parco dinheirinho iria dar um basta na penúria por que passavam, eis que uma malfadada doença apoderou-se do desnutrido corpicho do irmão mais novo, o Nande, o de cara de doente, que em verdade era.
Nande amanheceu amarelão. A barriga roncava, não de fome. De dor mesmo. Acompanhada de uma vomitação nauseabunda, tudo que era ingerido retornava de onde vinha.
O pobre Dedé teve a infelicidade feliz de conseguir, por intercessão de um vereador pseudo-amigo, que a ele cumprimentava só em véspera de eleição, a tão sonhada internação via SUS. Foi um susto de verdade verdadeira. Só que no pequeno hospital ele foi encaminhado a uma médica novata, e como era bonita a esculápia!, que a ele encarou como o diabo foge da cruz credo.
Foi-lhe dado o diagnóstico equivocado de mal da próstata. E olha que o pobre Nande só tinha bem menos que trinta anos quando o incidente aconteceu. E urinava tão bem que o jato atingia mais longe que a serra que daqui se avista. A perder de vista.
Encaminhado ao urologista, que por acaso sou eu, assim que aprumei-lhes o par de olhos inquiridores de médico escritor, logo dei por mim que o capiau Nande tinha sim era um baita úlcera em vias de perfurar. Com uma sonora e trágica peritonite, ou mal ainda pior.
Hoje Nande está internado. Em mãos capazes de um excelente especialista em gastroenterologia. Não vou declinar-lhe o nome nem o endereço, nem ao menos o telefone, pois o colega o chamo de “agenda cheia”.
O fato, para não encompridar ainda mais meu escrito, nem ao menos meu grito, quando vi os dois, assentados às duas cadeiras a minha frente, logo nos amamos às primeiras palavras mal ditas (escritas e faladas erroneamente).
Quando preenchia a ficha do paciente Nande, ao lado dele estava o Dedé, quando foi a vez de perguntar qual a sua altura, quanto media em metros e centímetros, ele respondeu, com voz de coruja com sono: “metro e emucado”.