Desgraça muita é bobagem

Existem aqueles que não se abatem por qualquer coisinha.

É o tipo de gente valente, estóica e denodada. Cujos embates da vida não lhe pesam nos costados.

São pessoas que enfrentam as calamidades sem se apoquentarem. Acostumadas que estão a todo tipo de intempéries. Qual sejam chuvas torrenciais. Secas que põem plantações a perder. Enfermidades que jogam pacientes no leito de um hospital. Mas a tudo isso enfrentam de cabeça erguida. Não se dobrando a qualquer dificuldade. São pessoas de índole altaneira. São chamados de bravos, embora sejam mansos no seu coração.  Como esse amigo que fui testemunha da sua bravura indômita frente às chuvas que lá se vão.

Chovia torrencialmente naquela madrugada do mês passado. Era água pra ninguém tentar ensacar.

Choveu durante o despertar da manhã. A noite não se fez de rogada, pois mais chuva caia sem cessar.

Durante o mês inteiro o sol se escondia por entre as nuvens. Não mostrava a carantonha por aquelas plagas. Nunca se viram dias tão cinzentos. Até parece que a luminosidade tinha seus dias contados.

Chicão, sem dormir desde o mês passado, não fazia outra coisa senão ajudar a resgatar pessoas da enchente. Usava um barco improvisado, feito às pressas de uma banheira enferrujada. Que servia de bote salva vidas. E como sabia nadar. Aventurava-se a entrar na enchente. Sem medo de se afogar naquelas águas barrentas. E recolhia, tanto os animaizinhos de estimação, quanto pessoas no telhado das suas casas. Casinhas modestas que sempre sofriam no período chuvoso. A mercê da incompetência dos gestores daquela infeliz comunidade.

Chico, pessoa de grande estatura, tanto moral quando de altura. Era o único que tentava salvar pessoinhas inocentes. Idosos eram os mais sofredores. Gestantes, mulheres embarrigadas, crianças ainda no colo das mães, eram resgatadas da enchente naqueles dias chuvosos.

A sua própria morada não se salvou da correnteza do ribeirãozinho que de repente se transformou num rio caudaloso. Ele acordou com água pelo pescoço. A geladeira novinha boiava naquela água barrenta.  O fogão, com muitas prestações a serem pagas, agora de nada servia. A despensa, cheinha de mantimentos, dava pena, pois nada mais tinha senão água pelo teto.

Mesmo assim Chicão, solteirão assumido, arregaçou a barra da calça, semi nova. E se pôs a disposição para o que desse e viesse.

Saiu, do que foi sua casa, antes das cinco da madruga. Era pura lama em todos os cômodos. Mas quem diz que ele se incomodava com aquela tragédia se equivocou redondamente.

Chico, estóico e resignado, não se fez de rogado e partiu para o salvamento.

Aquela banheira tosca, que boiava na enchente.  Foi a bóia salva vidas que tirou do bico do urubu pessoas que certamente não iriam sobreviver até no mais tardar do dia.

O velho Chico assim procedeu até que o dia virasse noite. Na sua conta foram resgatadas cerca de duas centenas de pessoas. As quais não teriam a mesma sorte caso ele não tivesse a mesma serventia de uma lâmpada queimada.

Foi a noite que nos encontramos.  Chicão estava exausto.  Prestes a despencar como a grande árvore, à mercê dos dentes de uma moto serra.

Foi essa a nossa prosa. Quando, na intenção de encomiá-lo. Soltei meia dúzia de palavras.

“Chicão. Parabéns pelos seus feitos. Não fosse por você não sei o que seria dos seus vizinhos. Você é um verdadeiro herói. Digno das maiores comendas. Ver a sua casa cheia d’água. E mesmo assim deixar sua morada em plena enchente. E se dispor a salvar tanta gente. Que com certeza iria perder a vida nessa água barrenta. Mais uma vez, em nome desse povo, lhe agradeço.”

Chicão, olhando fundo nos meus olhos. Simplesmente me respondeu desse jeito.

“Ah! Tô acostumado a esse tipo de acidente. Todo ano é a mesma coisa. Nem me apoquento mais. Desgraça, muita, ou pouquinha, pra mim é bobagem.”

Olhando, de esguelha, o sorriso das pessoas agradecidas, não pude deixar de agradecer o velho Chico em meu nome também.

 

 

 

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