Já guardei segredos. Hoje não os tenho mais.
De repente deixei meus segredos serem levados pelo vento. E eles foram enxotados rumo aos céus.
Agora, na aurora da minha vida, pra que guardar segredos? Eles serão desvendados e postos ao lume do dia. E não tenho mais a pretensão de esconder a minha idade. Meus cabelos brancos atestam a veracidade dos meus muitos anos. Embora não tenha rugas o tempo vai passando independente da minha vontade. Ai quem me dera voltar aos verdes anos quando comecei a namorar aquela menina no rela do jardim.
O frio já começava a lamber a terra ressequida na roça do meu amigo Sô Mané.
Ele morava num lugarzinho escondido atrás da serra cujo nome esquisito era Trumbuco.
Quase ninguém conhecia onde era. Quem se aventurasse por aquelas beiradas por certo tinha errado a estrada. Fim de mundo era o tal Trumbuco.
Sô Mané já tinha dobrado em muito a serra. Na altura dos seu quase centenário ele mal parecia ter uns sessenta.
Pele lisinha como a de um pêssego por madurar. Cabelos tintos em preto luzidio como a asa da graúna. Caminhar ereto andando sempre reto. Fôlego de corredor maratonista bem no começo da corrida. E ele costumava a dizer, contando lorotas aos que mal o conheciam: “ah! Quer apostar comigo quem chega mais depressa ao final da reta? Te dou uma dianteira razoável. Ao final da carreira ainda te ofereço a minha ajuda. E, se não tens a capacidade de andar até na lonjura do infinito. Eu vou devagarinho. Não tenho a pretensão de ser um corredor menino. Já que a idade já quase me leva à sepultura”.
Muitos nem lhe imaginam a idade. Sô Mané em muito já deixou a mocidade. A fase adulta passou numa penca de segundos. Os sessenta já não lhe deixaram marcas na sua face lisinha. Os oitenta, quem lhe dá, se enganam redondamente.
Naquela data alvissareira aquele senhor de mais idade assoprava quase cem velinhas. Num bolo enorme feito por suas netinhas.
Naquela salinha modesta ajuntavam-me quase cem convivas. Todos eles aparentados ao Sô Mané do Trumbuco.
Inclusive eu, mesmo sem ser convidado, estava presente. Levei pra ele um presente que esperava fosse do seu agrado. Um lindo par de suspensórios. E uma gravata borboleta da corzinha exata dos seus olhos azuis.
A festa estava apenas começando. As cem velinhas acesas enfeitavam a escuridão da noite.
Sô Mané era a expressão exata da felicidade. Sorria na sua banguelice de uma gengiva a outra.
Era um dia especial. Afinal nem sempre se faz cem anos.
Os filhos, netos, bis e tataras, celebravam a efeméride não como se fosse a última.
Quem sabe outras datas como essa estariam por vir.
Lá pelas nove da noite, Sô Mané, já bocejando de sono, dele me acheguei.
Dei-lhe um abraço carinhoso. Apertei-lhe as mãos.
Antes de ir embora. Vendo aquela face sem sinais de envelhecimento. Sem rugas ou cabelos brancos. De andar ereto e ainda lúcido com a memória afiada. A ele perguntei qual o segredo para ele se conservar desse jeitinho.
Sô Mané do Trumbuco, com seus olhinhos azuis brilhando como uma estrela em plena claridade. Me disse e não pediu que guardasse segredo.
“Quer mesmo saber? Eu descomplico tudo que é complicado. Não discuto com idiotas. Deixo que eles pensem que o certo são eles. Não guardo rancores. Não penso tanto nos anos que me restam. Penso em viver o hoje o agora. Se estou de mau humor espero ele passar. Pra mim tudo ta bom mesmo se estiver ruim. Não guardo lembranças ruins. Esqueço-me fácil de momentos negativos. Sempre estou fazendo alguma atividade. O ócio pra mim é o começo do fim. Ando sempre. Mesmo tendo um carro na garagem. Quando alguém me chama para falar da vida dos outros me calo. Não tenho mágoas de ninguém. Se falam mal de mim não escuto. Faço de conta que aquele sorriso foi pra mim. Não riem de mim”.
Deixei o Sô Mané com um afetuoso abraço bem apertado. Que a sua sabedoria nos faça pensar do mesmo jeitinho.
Agora já sei o segredo que ele não guarda a sete chaves.
A sua juventude, aos cem anos, se explica singelamente no que ele deixou escrito.
No que eu resumo com essas palavras. Que tenho pra mim com inteiras verdades.
Se quiser envelhecer com dignidade faça exatamente isso.
Não complique nada. A vida é por demais complicada pra se viver.