Essa paixão me consome

Como os gostos e as preferências mudam no passar dos anos.

Em criança amava brincar na rua. Mais jovenzinho a rua ainda me atraia. Naquelas brincadeiras gostosas, quais sejam cricar bolinhas de gude, jogar finca e bete, andar de patinete.  Não motorizada, felizmente, levando tombos frequentes que não me faziam desistir de me equilibrar de pé naquelas ladeiras empinadas. Subindo ou descendo morros. Ainda bem que sob a vigilância estrita de meu saudoso pai.  Que, quando naquele cambinho cambeta tinha ainda a pretensão de ser jogador de futebol. E, durante as quedas ele entrava em campo e passava gelol que a dor logo passava.

Mais tarde meus gostos eram outros. Apreciava sim lançar olhares gulosos em direção aquela menina moça.  Que depois da missa das dez, passeando no rela do jardim. Fingia que olhava pra mim, mas era pra outro. Mas eu não desistia. Olhava de novo pra ela lançando olhares furtivos. E elazinha, lourinha, fingindo-se encabulada. Me passava um bilhete com sua letrinha tremida. Dizendo pra nos encontrarmos na porta do cinema. Antes que seus pais soubessem. Desde que euzinho pagasse as meias entradas. Num filme que já me esqueci qual era. E não fosse proibido para menores de dezoito anos.

Já passando da maior idade meus gostos mudaram. Passei a apreciar andar de carro. Embora não tivesse carteira de motorista, mal sabendo distinguir entre a embreagem e o freio. Pisava no acelerador. Dava cada cavalo de pau. Até que o guarda me parasse na esquina da minha casa.   Era ai que mais uma vez meu paizinho me socorria. E se pagasse a multa ela era descontada na minha mesada. Que não era tão polpuda quanto a vergonha que eu passava.

Uma vez adulto minhas preferências se bandeavam para o lado da profissão que elegi. A medicina até hoje me encanta. Passei noites em claro. Vem de ai a minha ojeriza pelas noites. Nunca fui um boêmio. Sempre dormi cedinho.  E acordava antes do empoleirar das galinhas.

Os meus gostos mudaram de cerca de vinte e cinco anos pra cá. Foi na noite do passamento do meu pai que descobri dentro de mim o prazer de escrever tanto. Antes não era assim. No máximo algumas mal traçadas linhas escrevia pras minhas namoradas. Não foram tantas assim, pois logo que aqui cheguei me encantei por uma e logo me casei. E com ela me aquietei.

Agora, deixando minha infância perdida nos anos. Prestes a entrar na melhor parte da minha vida. Não me chamem de velho. Prefiro ser chamado de tio. Essa minha velha redescoberta paixão tem feito comigo milagres. O que seria de mim sem meus escritos? Sem a inspiração que me cavouca a cada dia no despertar de mais uma manhã? Sem meu computador que atura meu escrever constante? Sem as minhas memórias que não as deixo perder no esquecimento?

Essa paixão me faz reviver. Sem escrever não vivo. De vez em quando releio meus livros. Minhas crônicas me fazem relembrar de coisas e loisas do meu passado. Daquela rua onde cresci, daquela casa avarandada que não existe mais. Dos bons tempos que se foram. Do começo da minha carreira profissional. Da minha chegada da Espanha ao Rio de Janeiro. Do cachimbo de onde soltava fumaça. Das minhas melenas topetudas. Daquele bigode negro. Daquele olhar altivo de um jovem sonhador que não deixou de sonhar mas vive uma realidade perdida num mar de desilusões.

Essa paixão de escrever sempre me consome. Me toma por inteiro.  Pode me tirar o sono. Mas sem ela não vivo, vegeto.

O hábito de retratar o cotidiano pra mim é tão essencial como o ar que respiro. Tenho pelas palavras o melhor sentimento.

Essa paixão que me consome não quero, nunca irei desejar outra coisa senão me livrar da inspiração que faz os meus dias cada vez melhores.

Nesse mês de junho entrante faz vinte e cinco anos que aprendi a ser um médico melhor do fui. Podem me perguntar a razão.

E eu respondo: “graças a essa paixão que me tem consumido.”

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