A vida escorre desse jeito.
Nascemos, crescemos, tornamo-nos adultos, deixamos a juventude pra trás.
E de repente, não mais que num repente, a velhice chega, implacavelmente. Deixando um rastro de saudades marcando a nossa trajetória pela vida. Embora muitos não tenham essa regalia e param no meio do caminho.
A velhice é um estágio dito final de nossa caminhada. A longevidade deve ser desfrutada como quando se sorve o sumo doce de uma laranja docinha. Ela deve ser curtida prazerosamente. Gole a gole, sentindo o frescor de uma madrugada depois de uma chuva benfazeja.
Estar velho não é como se sentir uma carta fora do baralho. Ou um sapato gasto e furado na sola. E sim uma pessoa que carrega as costas um balaio cheio de experiência. O velho deve ser reverenciado. Cortejado como um rei que não perdeu o trono.
Velhice desacompanhada é como viver solitário numa ilha deserta. O velho precisa de carinho. De achego, de companhia. Uma vez passada certa idade carecemos muito de afeto.
“Não me deixem só”. Dizia um bom velhinho.
Mas a família o abandonou quando ele mais precisava. De caminhar trôpego, audição capenga, visão embaciada por uma névoa densa que se formou do lado de fora da sua retina.
Seu Manoel, felizmente, tinha a sua amada esposa a lhe fazer companhia. Era ela a sua conselheira, a sua escora, o único e derradeiro alento que o fazia sentir vivo.
Eles se conheciam desde o curso primário. Ela, garota ingênua, assentava-se a uma cadeira do lado. Boa aluna era ela quem lhe mostrava as respostas das questões mais complicadas.
Tudo começou no rela do jardim. Ela aos quatorze anos. Ele um ano a mais.
Desde aquela troca de olhares eles nunca mais se desgrudaram. Ela sua primeira e única namorada. Ele já teve causos com mais umas.
Dona Margarida era um amor de pessoa. Prendada, na cozinha só lhe faltava a titulação de chef. Habilidosa bordadeira fazia trabalhos de encantar as melhores do ramo.
Eles viviam como dois namoradinhos embora já tenham passado dos muitos anos.
A casa deles era um brinco. De muros baixos e roseiras no jardim.
Os filhos não os visitavam. Mas eles se bastavam.
A companhia de um era o suficiente para encher a casa de alegria. De mãos dadas faziam caminhadas pela pracinha da cidade. Eram admirados por todos que os conheciam.
Mas a vida de vez em quando nos prega peças.
Seu Manoel ficou doente. Vitima de mal súbito foi internado num hospital público.
Dada a elevação de sua pressão arterial foi acometido de um AVC.
A partir de então não pode mais mover as pernas. Permanecia no leito sem poder se levantar.
Sem recursos para pagar uma cuidadora era sua amada esposa que se desdobrava em zelar por ele.
E com que carinho ela se dedicava. Trocava-lhe os fraldões. Dava-lhe comida na boca. Era ao mesmo tempo esposa e enfermeira.
O tempo passava. Os anos se sucediam.
Naquele mês de março, quase outono, Seu Manoel completava noventa anos.
Dona Margarida não o deixava um minuto sequer. Era toda cuidados com seu amado esposo.
Naquele dia foi a vez de assoprar velinhas. Um monte delas clareava a sala. Não vieram convivas. A família do aniversariante mais uma vez se fez ausente.
Uma faixa foi carinhosamente escrita no frontispício da parede da sala. Com esses dizeres: “meu querido Manoel. Ao final de nossa vida só ficamos nós dois. É mais do que suficiente para continuarmos a viver na paz do Senhor.”
E não é que eles passaram dos cem? E até hoje vivem sozinhos como se não fizesse falta a presença de ninguém mais.