Estou em contagem regressiva

Cansei de entrar em obituários.

Ontem morreu a dona Mariquinha. Aos setenta e oito anos.

Hoje se despediu dona Aurora. Nova ainda. Em pleno vigor dos seus sessenta.

Dois dias atrás deixou de existir o senhor Antenor. Não se sabe a causa. Deve ser de causas naturais, pois ele beirava o centenário.

Aquele bebezinho não conheceu a vida. Morreu recém nato. Horas depois do parto. Deixando seus pais chorosos. Já que era o primeiro filho daquele casal enlutado.

Como deixei escrito. Nos parágrafos que precederam esse texto. Já manifestei minha ojeriza de tanto ler noticias de falecimentos. Cansei de falar de morte. De perdas que aconteceram. De saudades que ficaram. De lágrimas que foram derramadas ensejadas por pessoas queridas que partiram ao além. E, se é que existe vida do outro lado dessa que desfrutamos. Prefiro continuar aqui mesmo. Sentindo o hálito fresco das madrugadas. O respiro apetitoso do vento. O despertar do sol que entre nuvens cinzentas desperta sonolento.

Não tenho dúvidas que um dia partirei. Não irei ficar pra semente.

Já completei setenta e cinco. Em dezembro que se avizinha estarei setenta e seis.

Meu saudoso pai deixou-nos órfãos aos setenta e sete. Se contar dois anos mais estarei junto dele em apenas dois.

Minha saudosa mãe se foi aos oitenta e três. Se assim acontecer comigo me restam mais oito.

Não tenho a pretensão. Muito menos a ilusão. De saber exatamente a data da minha despedida. Despeço-me dos amigos quando deles me afasto. Digo adeus, ou até breve, quando me dirijo a algum lugar e retorno sempre. Mas dizer adeus pra sempre não sei quando vai ser. Em que dia será? Em que ano se dará? São incógnitas pra mim desconhecidas. Que prefiro sejam relegadas ao esquecimento do olvido. Numa data ainda não declarada. Num dia de São Nunquinha. Ou num trinta e um de fevereiro de um ano ainda inexistente.

Daqui pra frente entrarei em contagem regressiva.

Em dezembro próximo estarei um ano pra trás. Aniversariei setenta e quatro. Retrocederei um ano antes no dezembro vindouro. De marcha à ré não irei olhar no retrovisor da vida.  Simplesmente irei voltar aos verdes anos da minha juventude perdida. Vencerei mais uma vez a dura etapa do vestibular. De novo recebendo o canudo de graduado em medicina. Ávido por me imiscuir nas intrincadas mazelas do corpo humano.

Retrocedendo ainda mais. Naqueles anos de antes. Quando ia a escola com a merendeira recheada de afeto. Que minha mãezinha preparava com tanto carinho. Aos sete anos no curso primário. Já sabendo escrever as primeiras letras. Que saudades dos tempos de outrora. Das saias rodadas e dos meus amigos moleques. Que brincavam descalços na terra batida. Das casas sem grades e roseiras nos jardins.

Estou em contagem de regresso à primeira infância. Quando, no rela do jardim, olhei pra ela. E ela olhou pra mim. Trocamos olhares. Demo-nos as mãos. E daí veio o primeiro beijo na face. Que nos fez ruborizar todinhos.

Dessa data em diante tornamo-nos um só. Do casamento vieram filhos. E estes dois nos deram netinhos. A continuação da gente.

Pena que não se pode escapar da realidade. A contagem regressiva me fez parar no nascimento. Foi em Boa Esperança que tudo se deu.  Naquele distante ano de um mil novecentos e quarenta e nove. Hoje perfazem setenta e cinco que meus olhos viram o mundo pela primeira vez.

Já estou cansado de ler noticias de mortes. Embora saiba que ela vai acontecer não tenho a pretensão de saber quando vai ser a minha. Nem a de vocês.

Essa contagem regressiva para por aqui. Não mais conto anos. Nem ao menos desenganos.

Simplesmentemente vivo. Respiro. Aspiro o ar que me adentra pelas narinas. Retrato o cotidiano.  Escrevo como forma de tentar aplacar a ansiedade que me domina.

E no dia em que não mais estiver por aqui lhes peço. Ou melhor, lhes suplico.

Não me deixem partir sem levar, nas minhas exéquias. Juntinho de mim toda a minha inspiração. E esse computador onde tenho arquivadas  todinhas as minhas crônicas. São tantas que não cabem dentro do meu caixão.

 

 

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