“Pra mim ainda nem começou”

Tudo na vida deveria ter começo, meio e fim.

Mas nem sempre isso acontece.

O começo se despede. O meio nem tem início. Já o fim se precipita e acaba caindo no começo.

E assim caminha a desumanidade. Cada vez mais desumana. Invertendo valores. Valorizando o que não tem. E dando graças aquilo desprovido de graça. Como se os tais influenciadores digitais ditassem as normas. Como se fossem eles os donos da verdade. Mas graças ao bom Deus tenho por mim aqueles que deveria seguir os passos são meus antecessores. Como exemplo de vida cito meus pais. São eles que me presentearam com o melhor presente- a vida que tenho levado. E seus exemplos de dignidade e amor à família.

E que vida é aquela que vive meu compadre da roça. Seu nome se escreve Zé Matuto. Não se nome de batismo ou alcunha de verdade.

Um caboclo tinhoso. Não diria vaidoso. Pois meu amigo Zé nunca teve tempo de se olhar no espelho. Nem mesmo para pentear os cabelos que não tinha. Ele era mais careca que uma bola de bilhar. Desde a tenra idade era carequinha. Mais feio que urubu zaroio. E cego de um olho. Ainda por cima.

Pra ele não tinha tempo pior que ruim.

Se chovia além da conta ele se benzia para a chuva atenuar.

Se porventura de uma desventura o sol rachava de amarelar ele logo orava para que a chuvarada fosse mansa como a égua marchadeira que custava a empinar.

Zé Matuto vivia com ele só. Não tinha o costume de se ausentar da sua rocinha. Fora algumas ocasiões especiais quando, a contra gosto de um desgosto, tinha de ir à cidade comprar mantimentos.

Já foi casado em tempos idos. Mas a indignissima esposa nele meteu chifres. E nunca mais procurou rabo de mulher. Dizem, nos arrabaldes, que ele amava, de verdade, a sua égua pampa. Com quem teve um caso de amor em riba de um cupim morto. Daquele consórcio não nasceram filhos. Pois uma caxumba recolhida acabou por aniquilar seus tentos. Isso sou testemunha depois de uma consulta que ele fez comigo.

“Eita aninho ruim esse que quase finou”. Fora as alterações climáticas nada a declarar de bom.

Mas a vida tinha de continuar para o amigo Matuto. Ele não era de reclamar.

Acordava ao deitar das galinhas. Preguiçosas que eram nem se davam ao desfrute de botar. E se botavam cadê os ovos? Eram afanados ainda no ninho pelos gambás.

De fato, aquele ano quase morto não merecia ser lembrado. O preço do leite era mais baixo que o morrinho por onde descia o caminhão leiteiro. E quando chovia a lama não permitia o tal descer lá em baixo onde deveria recolher o leite derramado.

Se alguém souber de algum ano pior me diga que eu não boto fé.

Esse ano que boceja de sono foi um dos piores que Zé Matuto já viu terminar.

Chovia quando não carecia. Escasseava a chuva quando dela mais precisava. O sol quente dizia: “tá vendo? Agora que cortou árvores cadê a sombra”?

Não bastasse tamanha carestia dos preços o dinheiro andava sumido. As contas perdiam a conta amontoadas no tampo da mesa. O tal programa do atual desgoverno – batizado de desenrola, mais enrolava o devedor que propriamente aliviava seu bolso vazio.  O tal salário mínimo não durava nem remediava a pobreza dominante. Nunca se viu tantas pessoas mendigando sobras. Nas ruas das cidades a pobreza se alastrava como pragas num jardim descuidado.

Mas meu amigo Zé Matuto nem se lixava para o estado calamitoso da atualidade.

Ele sim, pra mim, era um exemplo exemplar de vida mesmo não tendo seguidores nas redes dissociadas da realidade das tais chamadas redes sociais de convivência virtual.

Quem o visse, como eu o vi, numa tarde quase morta, era mais ou menos seis e meia. Com o sol fechando os olhos de sono. Com a camisa empapada de suor. Cansado da lida. Depois de um dia como os outros, duro.

Acabei puxando prosa: “Zé, que tal esse ano que quase termina”?

A reposta veio não ponta do seu boné surrado: “ah! Pra mim ele nem começou”.

Num é???

 

 

 

 

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