Seria uma solução ?

Como tem sido difícil, poder-se-ia dizer impossível, viver e conviver nos dias de hoje.

Antes, naqueles idos tempos, quando era menino, naquela rua por onde sempre passo, no quase fechar de olhos das tardes, a mesma rua se cruzava com outra, em descida, hoje nomeada de Avenida Doutora Dâmina, antes rua do Cascalho, pois ainda não havia recebido aquele tapete negro, muito menos os paralelepípedos, eu, e meus amiguinhos, de cores e pés descalços, brincávamos serelepinhos, corríamos atrás de pipas nos tempos de ventania, jogávamos finca e bete, as bolinhas de gude eram as minhas prediletas, e, quando o porteiro se descuidava lá íamos em carreira, a entrar, ou pular o muro não tão alto, em direção àquele mesmo clube agora bem modificado, lindo, cada vez mais, graças ao empenho de tantos administradores, hoje não posso me esquecer de citar a atual Patrícia, que, atenta a todos os detalhes, ontem me disse não ter tempo de ler nenhuma das minhas crônicas que porventura a ela tenha encaminhado, via whatsup.

Que nostalgia tenho, intimamente e unissonamente, guardado, poderia dizer trancado à sete chaves, dentro deste meu peito sensível, cujo coração, embora idoso, ainda muge compassadamente, ao som de um tom melodioso, seja de um bolero, ou até mesmo de um tango, imortalizado pelo grande músico Carlos Gardel.

Naqueles anos, entre um mil novecentos e cinquenta, até o de número sessenta, e um cadinho mais, não era tido como coisa de mal dito, ou considerado assédio, ou até mesmo mal falado, sujeito a processos judiciais, quando a gente, garotos imberbes com a face recoberta de cravos e espinhas, chamávamos, sem malícia ou intenção de menosprezá-los,  ou agredi-los, de neguinhos ensacizados, moleques de cujos narizinhos arrebitados com melequinhas despenduradas na ponta do apêndice nasal, foi onde comecei meus estudos no jardim da infância, de mesmo nome, nós, meninozinhos cujas idades variavam, e, não por um descuido, poder-se-ia chamar de safadeza mesmo, olhávamos, de rabo de olho inteiro, em direção às pernocas grossas das meninazinhas, até mesmo passávamos as nossas  mãozinhas nada bobas,  nas suas pernas desnudas, naquele banho de piscina.

Ai que saudade dos verdes anos da minha infância perdida, cujos anos, infelizmente, não voltam mais.

Não havia quase maldade em nossas carinhas cheias de sardas, ou espinhas. Que eram espremidas por nossas namoradinhas. Quando na sala de visita delas, numa distração de seus pais, a gente se beijava, acarinhávamos, sem maldade, embora as nossas mãos inquietas se imiscuíam por locais proibidos, e, assustados pela presença inoportuna dos pais da menina, fingíamos que procurávamos uma coisa perdida, e não encontrada, por baixo da sainha sem calcinha de nossa namoradinha. E como ficávamos de carinhas vermelhas, por aqueles atos falhos, não intencionais, quando, em verdade verdadeira era sim um ato obsceno.

Ainda me lembro, com lágrimas incontidas quase descendo pelos olhos, dos tempos quando  a gente podia brincar, soltar piadinhas aos passantes, desconhecidos ou não, e, quando a gente nem esperava, a outra parte, se sentindo ofendida, olhava-nos nos olhos, e nos repreendia com insultos e impropérios, como quando ontem aconteceu comigo, quando saía de um supermercado, próximo de onde moro, buli com um motoqueiro, decerto de mal com ele mesmo, de estopim prestes a explodir, como o estresse tem tomado conta de meio mundo, nestes tempos de crise e onde miséria pede esmola à portas de bancos, debaixo de marquises, simplesmente pilheriei com ele, pedi carona no  banco de trás de sua motocicleta, ele me inquiriu se possuía um capacete, e eu, naquela tentativa malograda de brincar, troquei a palavra capacete por uma quase equivalente, ele quase desceu de sua motocicleta, passou a me agredir com palavras de baixo calão, e, para evitar atracamento, indesejável, saí de perto, e fui em direção a minha morada, pensando como a vida anda complicada, neste século vinte e um..

Ontem, nadando na piscina menor, daquele mesmo clube da minha infância, cujas águas são cálidas e cristalinas, na raia perto de um colega de faculdade, um baita pediatra, médico do trabalho, musicista e cantador, violeiro de dedos e voz afinados, ele, nos intervalos de nossas braçadas,  disse-me o que em parte já sabia.

“Paulo. Já estava afastado, há tempos, da pediatria. Há coisiquinha de um ou dois anos afastei-me definitivamente da medicina. Hoje, depois de quase cinquenta anos de formados, fomos colegas na faculdade de medicina da federal, naquela BH hoje muito modificada, aposentei o estetoscópio. O manômetro de aferir pressão arterial nem sei por onde anda. A minha maleta de médico agora serve de morada de ratos. Aquela indumentária branquinha mora encardida dentro de algum armário. Hoje me dou o direito de ser chamado de aposentado por completo”.

Agora, nesta manhã iluminada, o mês de agosto está quente, os ipês estão a se cobrir de amarelo ouro, a minha lembrança faz uma reviravolta ao dito do meu saudoso pai.

Ele assim dizia: “meu filho. Não se aposente nunca. O ócio é o início do fim”.

Hoje, ainda na casa dos enta, em dezembro, dia sete, passarinharei mais um ano. E vocês todos passarinharão.

O dito por aquele colega de classe, daquela turma da medicina graduada em um mil novecentos e setenta e quatro. Tenho por testemunha esta fotografia em que eu, creio que aos quase trintanos, na minha sala de exames exibe um topete alto. Uma pinta negra abaixo dos lábios. Um farto bigode negro. Uma testa não tão ancha como hoje se mostra. E, na minha face onde imperava e morava a juventude, sonhos ainda brilhavam. Muitos deles esboroaram-se num amontoado de escombros.

Cá comigo penso. Imagino. Seria em verdade a solução contra a dissolução?

Meu colega de farda, compositor, ao me afirmar que se aposentou por completo. Não mais deseja ouvir falar de doenças, agora de amor novo, acaba de encontrar a felicidade plena. Sê Pleno! Diz o poeta ginecologista e obstetra, o grande Lucas Giarolla.

Meu colega Eugenio Gomez, não Gomes, como pensava, ao afirmar que, ao se aposentar por completo está no meio, ou no final, de abraçar a felicidade total, ignoro, se em verdade ele assim o fez.

Meu pai dizia: “o ócio é o começo do fim”.

E, de fato, assim que ele se aposentou, após uma brilhante carreira no Banco do Brasil, e teve início outra profissão, pelas trilhas tortuosas do direito, um dia, tristes lembranças, ele se despediu da vida, deixando uma lacuna impreenchível não só no cerne da sua familia, bem como daqueles que o conheceram.

Aposentar-se, por completo, seria de fato uma solução? Ou uma dissolução em nossa caminhada pelas estradas afora?

 

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