Tenho fome por outros motivos

Não restam dúvidas que tanto a fome, também conhecida modernamente por insuficiência alimentar, tem assolado o nosso mal afortunado país.

Infelizmente não só pelas bandas de cá, como da mesma forma em alguns rincões onde a miséria prepondera, cada vez mais ouvimos falar em famílias inteiras passando por percalços, necessidades básicas, morando em barracos dependurados no alto de morros, observando, lá do alto, na orla linda do mar, endinheirados, ricaços, ocupando coberturas ricamente mobiliadas, com cada salão com mais espaço, o triplo da área onde vivem, se é que isso pode ser chamado de vida, sob aqueles tetos, de folha de zinco, onde, no calor mais parece um inferno, onde nas chuvas as goteiras atravessam frestas, furos, por onde a água é despejada, isso quando não acontecem soterramentos, ceifando vidas inocentes, que bem poderiam ter um futuro condizente as suas situações de seres humanos, mais parecem cães abandonados, andando pelas ruas a cata de comida, cavoucando sacos de lixo  a procura de um ossinho de galinha qualquer, qualquer coisa que pudesse mitigar-lhes a fome.

Poder-se-ia definir a fome de várias maneiras. Melhor me expressaria ao dizer que existem incontáveis e incontestes tipos de fome.

Fome por conhecimento. Fome por falta de alimento. Fome de desejo de ocupar outro espaço, não aqueles barracos insalubres, dependurados em áreas de risco, que, a cada momento, depois de uma tempestade copiosa, podem despencar. E, naquele lugar onde dantes existiam moradias, agora se tornam cenários de desolação e dor. E não existe dor maior do que perder um filho. Lágrimas sentidas escorrem pelo canto dos olhos. E, no coração daqueles pais a saudade e as lembranças jamais serão esquecidas.

Tenho um amiguinho, ao mesmo tempo franzino e fanho, que vivia ao lado de um padrasto, pai postiço segundo me dizia o Antonino, Toninho para os íntimos, o qual a vida, para aquela criança, ao mesmo tempo ingênua e desassossegada, que vivia cantarolando pelos campos velhas cantigas de roda, pobre, nascido em familia tida como personagem bem ilustrativa de um livro que trata de fome, melhor dizendo, insuficiência alimentar, a qual mal tinha um prato de comida onde a fome fosse em menor escala, a geladeira sempre vazia, as prateleiras só mostravam traças passeando e cupins, elezinho, o tal Toninho, um dia, fazia frio, debruçava-se o inverno naquelas paragens perdidas onde mal se enxergava o horizonte, sempre distante de uma realidade surreal, me confidenciou: “doutor. O senhor mal sabe da fome que nos aperta o estômago vazio. Pela manhã, ainda escura, mal temos pão para amenizar-nos a fome. Passamos a manhã todinha sem nada, nadinha, algo que pudesse aliviar nossa necessidade mínima de nos alimentarmos. Eis que chega a hora do almoço. No tampo do fogão a lenha só moram panelas vazias. Com o preço do gás de cozinha, só nos resta a lenha, que, graças ao bom pai aqui, nesta rocinha prejuizenta as árvores mortas são presas fáceis de machados de fio afiado. Onde meu padrasto tira a lenha que aquece, com suas brasas silenciosas, cuida de esquentar as nossas noites estreladas.

Tenho fome sim. Continua o garoto Toninho seu rosário de queixumes.

Sinto por dentro, aqui, nas minhas entranhas, uma sede enorme de saber mais. De poder viajar pelo mundo. Entender outros idiomas. Quiçá me tornar um professor.

Tenho fome sim. De aprender a identificar entre o certo e o errado. De saber separar o joio do trigo. Tenho fome de conhecimento. Saber o porquê de tantos porqueres. Por que tanta porcaria infesta os rios, os mares, poluindo nosso bem maior, que são as águas. Fonte de vida e fertilidade do solo.

Tenho fome sim. Da falta de amor. Da cumplicidade entre casais. Tenho fome de conhecer quem foi meu pai, de verdade.

Sinto um vazio, por dentro, uma necessidade premente, de poder ter nascido em outro berço que não esse.

Sinto, pressinto, quem sabe, num porvir não tão distante, poder mudar a minha vida e daqueles que me rodeiam. E por que não mudar a realidade do mundo? Como seria bom se todos se aproximassem. Se dessem as mãos. Se acarinhassem nos momentos ruins. Dessem conta de suprir não somente nossa falta, a nossa fome por comida, como também a fome que muitos sentem de passarinharem os olhos naquilo que está escrito num bom livro.  Entender o sentido das palavras. (neste momento compreendi, já que escrevo tanto, e algumas palavras escapam do entendimento de muitos, melhor seria se eu pudesse me transformar um dicionário, conhecido por pai dos burros e iletrados).

Toninho, ao final de nossa prosa, ainda assim me confidenciou.

“Doutor. O senhor sabe tanto. Escreve tanto. Não poderia passar pra gente uma quantia minimazinha do seu saber? Tenho fome de aprender a ler. E, num dia quem sabe? Eu talvez me tornasse um escritor fecundo como a sua pessoa. Que está prestes a lançar mais um livro. O de número dezenove. Cujo título um dia me contaram – Leia com meus olhos”.

Já eu tenho ainda uma fomezinha que faz parte íntima dos meus devaneios.

Tenho fome de ser reconhecido como escritor de sucesso. Almejo, dentro desta mesma fome que me atormenta, de ter meus livros passados adiante. Colecionar leitores que amam os meus escritos. E como me faz bem terminar um texto. E como se fosse o epílogo de um orgasmo relaxante.

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